Pina (Philippine) Bausch, 1940-2009
Há 1 ano, empoleirada num banco alto do São Luiz, vi pela primeira vez Pina Bausch dançar. Achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o Café Müller, coreografia de 1978 que ela por uma vez interpretava – bailarina extraordinária, aluna mítica da Julliard, solista do Folkwang Ballet, Pina deixou de dançar em palco quando se tornou coreógrafa e directora do Tanztheater Wuppertal em 1973, dizia que não tinha tempo – , desde a resolução de convidar os bailarinos mais chegados para entrarem nela, à exigência deles de que ela dançasse também, à decisão de o continuar a fazer mesmo depois de Rolf Borzik, cenógrafo com quem dividiu trabalho e vida e que também entrava em palco, morrer em 1980 (desde que Dominique Mercy, um dos bailarinos que a acompanha desde os anos 70, continuasse em palco também). Sabia da importância histórica desta peça na dança contemporânea (com as outras coreografias que criou nessa altura, mas muito com Café Müller, Bausch marcou um antes e um depois no que entendemos por dança hoje e para sempre. Houve que inventar uma nova classificação para conseguir dar nome ao que ela fazia, ficou teatro-dança para esse trabalho que continua e leva longe o tanztheater alemão, cruzando todas as artes), do furor que fez em Berlim e depois no mundo. Tinha visto registos artesanais (Pina não queria a peça filmada, há pouquissímas gravações) e a homenagem de Almodovar em Fala com Ela, sabia do Purcell na banda sonora. Mas nada do que eu sabia ou julgava saber me tinha preparado para aquilo. Chorei do principio ao fim e saí de lá com a absoluta certeza de ter experimentado uma coisa extraordinária, comum, rara e universal.
Dizia ela (numa bela e rara entrevista a Vanessa Rato, no Público, há 1 ano) - “É difícil falar de certas coisas. Como é que se pode falar deste desamparo que temos no mundo? O que é que fazemos com isso? Carregamos isso, esses sentimentos tão presentes. E há uma grande necessidade de gastar emoções. Não é só felicidade. É também o oposto disso. (…) Eu também não sei. Há mais perguntas que respostas. Há muitas perguntas.”
Pina Bausch andava à procura de tudo aquilo por que passamos todos os dias. Dizia que se deixava guiar pelas coisas, diga-se sensações, e ia atrás delas (e dos seus bailarinos) para lhes arrancar uma qualquer verdade escondida que nenhum deles nem ela conheciam. Um dia perguntei-lhe (ela odiava entrevistas e o mais que se conseguia arrancar-lhe em presença eram mini-conferências de imprensa em que era sempre delicada e suave, quase tímida, e com um imenso sentido de humor) como escolhia os seus bailarinos e respondeu-me que o que a interessava não era a técnica de um bailarino mas sim o ser no mundo. A arte total do aqui e agora, como lhe chamaram alguns especialistas, precisava de individuos comprometidos, como ela, com a experiência da vida. Há muitos na Tanztheater Wuppertal, velhos e novos, altos e baixos, de todas as raças e nacionalidades e certamente credos.
Café Muller foi a última peça que vi dela. Houve outras, de umas gostei mais de outras menos, mas em todas encontrei momentos absolutamente comovedores, esclarecedores, luminosos, assustadores. As peças, longas, densas, divertidas, trágicas, andam sempre à volta dos encontros e encontrões entre individuos, homens e mulheres, uns com os outros e consigo mesmos. Houve algumas que vi também através dos olhos de outros, como Masurca Fogo, cuja criação Fernando Lopes filmou em Lissabon Wuppertal Lisboa, com Pina sempre de costas - a Imperatriz de cigarro na mão, a interrogar os seus bailarinos sob a luz de Lisboa, com Amália em fundo a cantar os versos de O’Neill. Vi-as de trás para a frente e graças a pessoas como Madalena Perdigão, António Mega Ferreira, Jorge Salavisa, Mark Deputter. Há-de haver mais, mas estes são os que eu sei que, furiosamente, quiseram e conseguiram trazer o mundo de Pina Bausch a Portugal. E Vasco Santos, da Fenda, editou em português Falem-me de Amor, que junta as comunicações de um colóquio dedicado a Bausch em 1992 e uma entrevista com ela. É também por causa deles que Pina Bausch vai viver para sempre.
Mas para já é o desamparo. (apesar de a Grande Homónima em boa hora ter feito o link, fica aqui outra vez Café Muller).