De Caim a Saramago
1 - Saramago tem todo o direito de dizer que "O Deus da Bíblia é rancoroso, vingativo e má pessoa".
2 - Saramago também tem todo o direito de dizer que "Caim nunca existiu".
3 - Saramago tem ainda o direito de dizer que "Sem a Bíblia seríamos outras pessoas - provavelmente melhores".
4 - Saramago tem o direito de acreditar que o seu Caim "é um livro divertidíssimo".
5 - Saramago tem o direito de dizer que "a Bíblia é um manual de maus costumes" e até que é um livro impróprio para crianças [esta última parte aparece no Público como tendo sido dita, embora não surja entre aspas].
E eu tenho o direito de dizer que Saramago fez uma leitura superficial da Bíblia, o que fica bem demonstrado pela assertividade, à laia de revelação, da sentença, "Caim nunca existiu" - há alguém com dois dedos de testa que diga o contrário? (eu disse: com dois dedos de testa). Eu tenho o direito de achar uma tontaria aquela do "Sem a Bíblia seríamos outras pessoas - provavelmente melhores". Wishful thinking, no mínimo. Não fosse a Bíblia, seria outra coisa qualquer a tornar-nos maus. E cá estaria Saramago a escrever sobre uma inevitabilidade alternativa. O homem não é a Bíblia, a Bíblia é que é o homem - a não ser que acreditemos que o livro nos caiu dos céus aos trambolhões. Eu tenho ainda o direito de achar que uma leitura correcta da Bíblia pode ser um bom instrumento pedagógico - omitir a Bíblia, isso sim, é impróprio para crianças. Como, de resto, é impróprio omitir-lhes (às crianças) a existência do que quer que seja. Saramago acha Caim - o seu - divertidíssimo. Eu achei-o uma estopada, um tiro na água e uma oportunidade perdida para se parodiar o antigo testamento. E muito gostaria de ter achado o contrário, o que quereria dizer que tinha passado umas horas mais divertidas do que as que me foram proporcionadas. Já agora, divertidíssima (nalgumas partes) é a Bíblia. Por último, tenho o direito de continuar a gostar de Saramago, de o achar um escritor de excelência (mesmo Caim, longe dum Memorial, está bem escrito, o problema ali não é formal). Venha o próximo, que cá estarei para o ler, como fiz com este - ao contrário de muitos saramaguianos de primeira hora (mas de Sábado passado, quando lhes nasceu um deus).
PS - Já me esquecia, aquele david não-sei-das-quantas, o do Parlamento Europeu, parece querer instituir o direito de se poder pedir a alguém que renuncie à nacionalidade. Existisse tal direito de petição e, no que me toca, já teria destinatário. O autor do Memorial do Convento não me envergonha (como poderia?), pelo contrário. Envergonham-me, isso sim, os laras e os davides da vida.