limpar a casa
Descobri recentemente algo de revolucionário. Descobri que nos países nórdicos (leia-se ricos) as maioria das pessoas não tem empregados domésticos – esses a que damos, por hábito, estereótipo e atrofia de género, o nome de “mulheres-a-dias”. A primeira pessoa a afiançar-mo, numa conversa em que vá-se saber como tal veio a propósito, foi uma eurodeputada dinamarquesa. A eurodeputada, que, dizem (e, parece, é verdade), como todos os eurodeputados, não ganha nada mal, não tem quem lhe limpe a casa – limpa-a ela. A seguir confirmei a informação numa reportagem com noruegueses que vivem em Portugal: num país (a Noruega) considerado o de melhor nível de vida do mundo no índice de desenvolvimento humano, cada um varre, aspira, esfrega e limpa o pó ao que é seu.
À conversa com uma norueguesa de 70 anos, fui iniciada nos segredos: primeiro, ninguém entra em casa de sapatos (ficam logo à entrada), para não sujar o chão; segundo, não se passa quase nada a ferro – “Só as camisas dos homens à frente e mais nada” – terceiro, toda a gente que vive na mesma casa trabalha para a manter asseada, ao invés do que sucede noutras paragens, em que se convencionou que o trabalho doméstico tem género – o feminino, claro – e que não há mulher que não tenha nascido para fazer camas, passar colarinhos e escorrer esfregonas em condições e com, claro está, irreprimível alegria.
É caso para nos pôr a pensar, não é? Tipo, nós aqui a achar que somos os mais pobres e desgraçados da Europa (ou, pelo menos, da Europa “antiga”) e afinal damo-nos a luxos que a Noruega, a Dinamarca e a Suécia não se podem dar. E sem sequer termos noção disso. É certo que em Portugal nem toda a gente tem posses para pagar a alguém para fazer o tal do trabalho doméstico, mas a maioria das pessoas da chamada “classe média” tem pelo menos umas horitas de “empregada” por semana. É talvez, digamos, a definição de classe média: ter uma/um empregada/o para “puxar as orelhas à casa”.
Que pensar disto? Que se trata, no caso português, de um sinal de atavismo? Que ter possibilidade/hábito de contratar pessoas para limpar a casa é mau, e que num estádio superior de desenvolvimento nem nos passará tal pela cabeça? Ou que este facto corresponde a um sinal de bem estar que aqueles especialistas que estabelecem os critérios, os coeficientes e os escalões do “desenvolvimento humano” nunca reparam nestas coisas? Tenho para mim que nunca lhes deve ter mesmo passado pela cabeça – como decerto não passou pela cabeça de ninguém em Portugal, e é pena – saber qual é o índice de empregados domésticos per capita em cada país (sim, qual é? A prosperidade, pela vossa rica saúde, não é só carros e telemóveis – pela parte que me toca, é mesmo poder não me ralar com o pó nas estantes e com a limpeza do fogão) e que coisas como “quantas horas passa a aspirar e a estender roupa e a limpar a banheira por semana” não surgem como minimamente relevantes para quem se propõe aferir conforto, felicidade, bem estar e prosperidade.
Podia pôr-me para aqui com uma teoria feminista sobre este desmazelo científico (mais certo é que não se dê importância a algo que é considerado “coisa de mulheres”), mas prefiro ir por outro lado – o da invisibilidade da vantagem. Ao invés do que se passa com o valor dos salários ou com o nível de escolaridade, o que se ganha em ter empregados domésticos só se afere em tempo. E o tempo, provavelmente um dos bens mais preciosos de que se pode dispor, não costuma ser muito considerado. Por outro lado, a existência de muitos empregados domésticos tenderá a “baixar” o salário médio de um país – mesmo que, como é o caso português, os salários dos empregados domésticos sejam falseados por ausência de declaração ou pelo nivelamento artificial pelo salário mínimo. Uma pescadinha de rabo na boca. Mas a partir de agora, quando lhe disserem que os noruegueses é que vivem bem, pense nisso: algo que para eles é luxo para nós é normalíssimo. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de domingo passado)