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jugular

à nossa guarda

A mulher tinha 35 anos. Foi executada a tiro pelo marido, de 41, na manhã de domingo, em Montemor-o-Velho. Nada de novo; só nas últimas duas semanas foram pelo menos cinco as portuguesas baleadas, esfaqueadas, mortas à pancada pelos maridos, namorados, companheiros, ex-maridos, ex-namorados, ex-companheiros.

 

Esta chamava-se Manuela Costa. A mulher morta - é assim que lhes chamam nas notícias - estava separada do marido há um ano mas continuava a receber visitas dele na sua casa para a espancar. A mulher morta foi pela primeira vez no domingo - dizem as notícias que era a primeira vez, seria?, mas dizem também que "toda a gente" sabia o que se passava - fazer queixa à GNR após mais uma sessão de pancada. Com ela levou a filha mais nova, cinco ou seis anos. No posto, chamaram uma ambulância. Há notícias que dizem que os guardas pediram uma patrulha para a acompanhar. Mas nenhuma patrulha seguiu a ambulância: quem a seguiu foi o marido. A ambulância voltou para trás e parou junto ao posto. O homem também. Saiu do carro, armado com uma caçadeira, e matou a mulher. Dentro da ambulância. À porta da polícia. Na ambulância perseguida, que tem rádio e telemóveis, ninguém alertou as autoridades para a perseguição e para o perigo? E, se o posto foi alertado, como é que não estavam guardas cá fora à espera? E, se os guardas estavam à espera, por que não fizeram nada?

 

Mas esperem: ainda não acabou. Há uma mulher morta dentro de uma ambulância, uma criança ferida junto à mãe morta pelo pai, isto tudo à porta de um posto da GNR, e que se passa a seguir? Passa-se que os agentes da GNR tiram a caçadeira ao assassino e levam-no para dentro do posto, sem sequer o algemarem, sem sequer o revistarem. Dentro do posto o homem saca de outra arma e dispara. Um guarda morre, outro é ferido. Dizem-me isto as notícias, dizem-me até que o sindicato dos profissionais da GNR se queixou perante isto de "falta de meios". Falta de - eu li isto? - "coletes à prova de bala".

 

O sindicato não disse "tem de haver um apuramento de responsabilidades, uma pessoa não pode ser morta à porta de um posto da GNR depois de ter feito queixa do homem que a matou". O sindicato não disse "a polícia serve para proteger as pessoas e para cumprir a lei, isto nunca podia ter acontecido." O sindicato não disse "queremos saber como foi possível que aquele homem entrasse armado no posto e matasse o nosso colega". O sindicato não disse nada disto e o ministro da Administração Interna, que tutela a GNR e os bombeiros, também não. Se disseram não ouvi, não li, não sei. Como não sei de anúncio de relatório público sobre o que sucedeu, ou de garantia de que os filhos desta mulher vão ser indemnizados pelo Estado à guarda de quem estava quando foi assassinada.

 

Mas se calhar é isso: Manuela devia ter um colete à prova de bala. Devia ter nascido com ele. Ela e a filha: coletes à prova de bala, à prova de pancada, à prova de estupidez e de selvajaria, à prova da indiferença dos que sabiam e não fizeram nada, à prova da bonomia com que o homem que a matou foi tratado pelos guardas que não souberam guardá-la, da bonomia com que se olha para a morte desta mulher que estava à guarda do Estado, que nos pediu, a todos nós, que a protegêssemos. Da ironia de sabermos que o que há de novo aqui é isto: um matador de mulheres afinal também pode matar homens. Polícias, até. Se calhar é um assassino.

 

(publicado hoje no dn)

5 comentários

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    Carlos Azevedo 04.12.2009

    Presume-se que os nossos 'intelectuais' (agradeça o elogio e não questione, Fernanda, que a resposta deve ser de estarrecer) só deveriam falar de literatura, teatro, música e, vá lá, nos dias de menor inspiração, também um pouco de cinema. A morte de mulheres às mãos dos companheiros ou ex-companheiros é uma questão fodida, pelo que ficava reservada para O Crime, o 24 Horas e o Correio da Manhã; afinal, não fica bem a um 'intelectual' sujar as mãos.
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    Cátia Farias 05.12.2009

    Oh, não não, os intelectuais podem falar do que muito bem lhes aprouver. Nós, intolerantes e ingratos, que seguimos a prosa de alguns deles, é que achamos que se Hanna Arendt desatasse a escrever sobre os crimes do dia a dia deixava de "ter graça". Não é que isso a diminuisse, não! Mas, convenhamos, seria um desperdício.
    E depois... crimes é só escolher! Todavia, eles são já o desaguar, o irremediável.
    Enfim, metáforas e equiparações à parte, somos (nós, os leitores) mas é egoístas, impacientes e, claro, impertinentes!

    Bons raciocínios!
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    Carlos Azevedo 06.12.2009

    Cátia,
    já que refere Hannah Arendt, uma das minhas autoras de eleição, deixe que lhe diga que eu leria (não tenho a presunção de haver lido) tudo o que Arendt escrevesse. E sabe porquê? Porque uma pessoa inteligente pode escrever sobre o que quer que seja, que um leitor inteligente perceberá sempre onde ela quer chegar. E, porventura, o que essa pessoa escreveu não se esgota no objecto a que recorreu no imediato.
    Mas, como se impacienta com este tipo de textos, presumo que sinta necessidade de coisas que a estimulem. O que será sinal - continuo a presumir - que já leu Arendt na integra. E, assim sendo, ocorre-me: se leu Arendt na íntegra, como não deu pelas pequenas coisas, por vezes tão importantes, sobre que Arendt se debruçou? Leia com mais atenção, Cátia; não ler Arendt com atenção é sinal de ingratidão. Mas isso já a Cátia assumiu ser, não é verdade? Que tolice a minha. Boas leituras.
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    Cátia Farias 06.12.2009

    A título de exemplo: http://en.wikipedia.org/wiki/Eichmann_in_Jerusalem. Trata-se aqui de julgar um crime. É evidente que certos totalitarismos e formas de violência tirânica são crimes contra a humanidade.
    Descobrir por mim é só o que poso fazer!...
    As palavras seriam tudo o que teríamos para jogar caso os homens deixassem de ser paternalistas.
    Também, sempre lhe digo: a maneira como avança na análise da minha pessoa é um tanto arriscada (para não dizer ingénua), sobretudo nos dias de hoje onde já ninguém é quem mostra ser…
    No seu caso, a defesa da dama está feita. Por mim, continuarei a remeter-me à especulação.
    Até um dia destes.
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