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jugular

obrigada, dra isilda pegado

a joão falou aqui de um texto de isilda pegado, notória activista anti-escolha, anti-educação sexual, anti-preservativo (nunca esquecerei o tê-la ouvido, numa sessão de esclarecimento aquando da campanha do referendo de 2007, afirmar peremptoriamente que o uso do preservativo não impede a transmissão do vírus da sida), anti-divórcio, anti-igualdade e anti, adivinha-se, tudo o que não esteja no catecismo do momento, e do facto de este conter erros factuais.

 

fui ler. o texto contém de facto erros factuais clamorosos. diz que quando foi efectuado o referendo sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo na califórnia já o casamento tinha ali sido aprovado (por ordem do supremo tribunal da califórnia) há 4 anos, quando na verdade essa lei tinha poucos meses. frisa ainda que o povo da califórnia votou, no mesmo dia, maioritariamente em obama e no não ao casamento no referendo. há uma ilação a retirar dessa simultaneidade? há, proclama pegado: obama 'diz pretender legalizar o casamento homossexual em todos os Estados'. isilda pegado tenta assim contraditar o argumento de que o casamento de pessoas do mesmo sexo foi em portugal a votos nas legislativas, por estar contido nos programas do ps e do be (e implicitamente no da cdu, já que verdes e pcp tinham votado nesse sentido a 10 de outubro na assembleia). como isilda pegado se enganou tão clamorosamente na contagem de tempo de igualdade de acesso ao casamento na califórnia, admite-se que esteja também tão pessimamente informada quanto ao programa de obama, que repetiu durante a campanha ser contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. ou talvez isilda pegado saiba disso e tenha apenas apostado na ignorância dos outros (isto tem um nome e não só não é bonito como é capaz de ser pecado). continuando a apostar na ignorância dos outros, isilda pegado fala do referendo ao casamento como estando ligado ao 'superior interesse da criança' mas esquece-se de mencionar este facto que deve ser para ela estarrecedor: nos eua, que ela aponta como um exemplo a seguir porque lá se referenda o casamento entre pessoas do mesmo sexo, grande parte dos estados -- incluindo a califórnia -- admite a adopção por casais do mesmo sexo. pegado alega ainda que houve referendos sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo em mais de 42 estados na europa e américa. não sei quantos estados fizeram referendos sobre esse assunto, mas estou convencida de que não foram 42 -- e a factualidade das alegações de pegado não me inspira, como é bom de ver, a mínima confiança.

 

mas o mais interessante do texto, quanto a mim, está logo no início e é repetido a meio. não consigo perceber se isilda pegado leva a sua ignorância ao ponto de desconhecer que todos os exemplos que dá nesta frase, e que coloca no mesmo plano como situações que alterariam os 'pressupostos do casamento' de modo, supõe-se, igualmente apocalíptico -- 'Queremos que o casamento possa ser celebrado por pessoas do mesmo sexo? Queremos modificar os pressupostos do casamento? O casamento pode ser celebrado por pessoas de 14 anos? E de 10 anos? O casamento civil pode ser indissolúvel?' -- não só foram em portugal impossilitados por leis não sujeitas a referendo como, na generalidade dos casos, o foram afrontando o modo de regular o mundo que isilda pegado representa.

 

vejamos: a história do casamento civil, iniciada em 1867 com uma lei das cortes, não só foi iniciada sem referendo como só pode, na terminologia de pegado, ser considerada eminentemente fracturante já que se tratava de retirar à igreja católica o monopólio do casamento; o divórcio no casamento civil, proibido aquando da formulação legal do mesmo em 1867, foi permitido em 1911 pela república, proibido a partir da concordata de 1940 (também sem referendo, incrível) para os casamentos católicos e permitido em 1975 (também sem referendo) para os mesmos, através de uma emenda na concordata; o casamento com crianças era celebrado pela igreja católica em portugal (aliás de acordo com o direito canónico nos séculos xvii, xviii e xix a idade mínima era de 12 anos para as 'mulheres' e 14 para os 'homens', podendo ser admitidos, por autorização eclesiástica, casamentos com crianças ainda mais novas; esta idade foi legalmente alterada pelo código civil de 1867, que a aumentou, respectivamente, para 14 e 16 anos) e a lei portuguesa permitiu até ao início do século xx que assim fosse, tendo sido aumentada progressivamente a idade mínima do casamento pelo legislador (sem referendo! um escândalo!) até à actual, de 16 anos. e, por fim -- ou voltando ao princípio -- também o impedimento do casamento de pessoas do mesmo sexo foi decidido pelo legislador, sem recurso a referendo.

 

claramente feliz com o que lhe pareceu um expediente argumentativo de truz, isilda pegado repete a meio do texto a mesma ladainha: 'Como queremos viver? É uma decisão colectiva. Repito. Desejamos que crianças de 14 anos possam casar? Os muçulmanos em Portugal têm direito à poligamia? Os católicos têm direito a celebrar um casamento indissolúvel na lei civil? São tudo alterações possíveis à lei que regula o contrato de casamento. Aliás, há que perguntar porque modificamos um dos pressupostos do casamento e não modificamos outros'.

 

sim, isilda pegado, devemos de facto perguntar-nos. devemos perguntar-nos como pode suceder alguém, que se assina jurista, argumentar sobre um assunto como este num artigo de jornal e dizer tantas falsidades. devemos perguntar-nos como é possível que aquilo a que chama 'pressupostos do casamento' e tanto estima e apresenta como imutáveis tenha mudado já umas largas dezenas de vezes nos últimos 150 anos sem referendo e sem que pessoas como a isilda pegado tenham pelos vistos sequer dado por isso, apesar de grande parte das mudanças ter ocorrido no seu tempo de vida. devemos perguntar-nos como é possível que a isilda pegado não perceba que os argumentos que usa -- o de que mudar um pressuposto do casamento, como lhe chama, implica mudar todos -- se destroem quando os exemplos que dá de pressupostos supostamente imutáveis e fundamentais  ainda anteontem não o eram: nem pressupostos nem fundamentais. devemos perguntar-nos como é possível que isilda pegado não perceba que ao defender o referendo para uma alteração à regulação do casamento no código civil quando enumera como equiparadas na importância e efeito regras que foram determinadas sem recurso a esse expediente está a demonstrar que não faz sentido referendar uma regulação mais do casamento, sobretudo quando acabou de ser aprovada em eleições legislativas. tudo somado, devemos de facto perguntar-nos se não devemos agradecer a isilda pegado por tornar tão claro o que o movimento de que faz parte tem para apresentar como argumentos contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. isto, portanto.

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