o presidente que se declara 'instância não própria'
Gostava muito de saber com exactidão o que foi perguntado pela TSF a Cavaco Silva sobre o incumprimento da nova lei do aborto pelo Governo Regional da Madeira. Recordemos as declarações em causa. Disse Cavaco: "Quando a legislação não é aplicada, os cidadãos podem recorrer a instâncias próprias, ao sistema de justiça";"[É] às instâncias próprias, judiciais, que compete analisar se há ou não cumprimento da lei e, se não há, aquilo que deve ser feito". Assim, à partida, fica-se com a ideia de que o que terá sido perguntado a Cavaco é que opções tem uma madeirense que queira interromper a gravidez nas primeiras dez semanas, de acordo com a lei que ele próprio promulgou. Se foi essa a pergunta, ficamos então a saber que para o presidente a opção será colocar um processo (a quem? Ao hospital que nega a interrupção? Ao governo regional? Ao Estado? Ao destino?) -- e, naturalmente, esperar pelo resultado. Umas semanas, uns meses, uns anos -- não há pressa e, de caminho, terá nascido mais uma criança, que tanta falta faz a um país com tão mísera natalidade (isto se a mulher não abortar clandestinamente, o que a colocará, então, em condições de ser ela a processada, para além de lhe pôr em risco a saúde, mas isto são minudências). Claro que a pergunta também pode (e deveria) ter sido: 'Senhor presidente, o que acha da recusa do governo regional da Madeira em aplicar a lei?' Não sabemos. Mas sabemos, sem sombra de dúvida, que Cavaco decidiu não condenar a posição do Governo Regional. E declarar-se como 'instância não própria' para a sua resolução.
É talvez muito insolência minha recordar ao presidente da República quais os seus deveres, mas a Ana Matos Pires já o fez e eu reitero: ele é o mais alto magistrado da nação, eleito para garantir a qualidade da democracia e o normal funcionamento das instituições, tendo jurado sobre a Constituição. Num caso como este, em que pela primeira vez uma parte do território nacional recusa cumprir uma lei por si promulgada, o presidente da República só pode ter uma posição: exigir que seja respeitada a democracia, garantidos os princípios constitucionais e reposta a legalidade. Ou seja, condenar vigorosamente (de forma substantiva, sem se refugiar no formalismo de passar a bola que não tem por que ser passada aos tribunais) a atitude do governo regional. Ao não o fazer, o presidente demonstra ou não conhecer as suas funções ou não ter vontade de as cumprir. O que nos leva a levantar um incidente de suspeição. Dever-se-á esta atitude às suas convicções pessoais sobre o aborto por vontade da mulher ou a uma qualquer incapacidade de fazer frente a um líder regional do partido do qual foi dirigente (que, recorde-se, já o tratou respeitosamente por 'Sr Silva')? Qualquer que seja a sua motivação, porém, Cavaco Silva acaba de demonstrar, na primeira grande prova à sua presidência, que não está à altura do cargo. Que, de facto, é instância 'não própria'. Aliás, se um presidente remete para os tribunais as funções que são suas e só suas temos de concluir que o que nos está a dizer é que não precisamos dele. Ficamos com os tribunais e ainda poupamos uns trocos -- para aplicar, por exemplo, em incentivos à natalidade. A bem da nação. (recorde-se que Marcelo Rebelo de Sousa, ontem, na RTP 1, considerou inaceitável a posição do Governo Regional, insistindo, como o já fizeram outros juristas, em que este não tem legitimidade para não cumprir a lei. Esta asserção, porém, não o impediu de dizer que Cavaco 'disse o que havia a dizer'. Ou seja: Marcelo não precisa de perguntar aos tribunais se é ou não ilegal e ilegítimo o que o governo regional está a fazer, mas acha bem que o problema seja por eles dirimido, sem porém explicar como e por que tipo de tribunal e a pedido de quem. 'Imprecisões' que terão passado despercebidas à dialogante de serviço a quem, pelos vistos, também não terá ocorrido questionar Marcelo -- que foi nomeado por Cavaco para o Conselho de Estado -- sobre quais serão, finalmente, as obrigações de um presidente da República e de que fórmulas dispõe a democracia para impedir que um governo regional lhe cuspa em cima)