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a nova aventura dos cinco

Não sei se os miúdos ainda lêem os Cinco, ou “Os famosos cinco”, como lhes chamou a sua criadora, a britânica Enid Blyton. Eu devorei todos e cada um dos livros da série, e mais de uma vez. Quando comecei a ler a sua obra, Blyton, desaparecida em 1968, aos 72 anos, já não estava entre nós. Nada sabia dela e presumo que os meus pais, que tinham comprado os Cinco e os Sete para a minha irmã mais velha, também não. De modo que quando se aperceberam de que me estava a tornar aquilo a que à época se dava o nome de “maria rapaz”, ou seja, uma menina que queria fazer o que era suposto só os rapazes fazerem – jogar à bola, subir às árvores, andar à bulha, brincar com carrinhos – e odiava “coisas de menina”, como saias e sapatos de verniz e totós, talvez não tenham logo responsabilizado a dona Enid e a sua mais notória personagem dos Cinco, a “Zé” (ou George, na versão inglesa – a Georgina, de 12 anos, que exige que a tratem por nome de rapaz, só usa roupa masculina e cabelo curto e tem como melhor amigo o seu cão Tim), por tais, digamos, tendências. Que incluiam, para completar o figurino, um amor desmesurado por cães e uma enorme vontade de aventura.

Eu seria pois o chamado caso exemplar da influência (má ou boa, segundo a perspectiva) das leituras na formação da personalidade. Sucede, para estragar a teoria, que a minha irmã leu os mesmos livros e para ela a personagem de identificação era a Ana, a mais nova dos Cinco, a irmã de Júlio e David e prima da Zé. Timorata e “feminina”, a Ana gosta de saias, usa cabelo comprido, adora cozinhar e arrumar, é protegida por todos e debulha-se em lágrimas à menor contrariedade. Não, o mistério da formação da personalidade e dos mecanismos de identificação não se esgota decerto em receitas de leitura ou em sermões de qualquer espécie. Confrontando o estereótipo da menina-muito-menina com a maria rapaz que nas releituras actuais é vista quer como “uma referência feminista” quer como “transgénero” (termo cunhado nos anos 70 do século XX para alguém que assume, na forma de vestir, na atitude e nos “maneirismos”, uma identidade de género que não coincide com o seu género biológico), Blyton dava a imaginar. E as crianças imaginavam-se, de acordo com a sua intuição e desejo. Recentemente, a personagem da Zé surgiu-me como tema de reflexão a propósito das elucubrações da direita cristã fundamentalista polaca (repescando uma obsessão dos primos americanos) sobre uma das personagens da série infantil Teletubbies, o Tinky Winky, que, por ser lilás e “usar uma malinha”, poderia estar a “promover a homossexualidade”. Há qualquer coisa de comovente na crença inabalável que todos os sistemas totalitários demonstram no poder das criações artísticas para conformar as mentes e até, parece, as sexualidades. Venho pois por este meio apelar às autoridades polacas (e a todos os que como elas pensam) para, após acabarem de discutir se proíbem ou não os Teletubbies, dirigirem o sumamente esclarecido olhar para a mui subversiva Enid Blyton e para a sua mais tenebrosa criação, a Zé. Ao fim de 50 anos de sossego, os Cinco já merecem uma nova aventura. E a boa da Enid, a quem já chamaram “sexista”, “racista” e “classista”, uma segunda vida, como papisa do “lobby gay”. (texto publicado na coluna 'Sermões impossíveis' da Notícias Magazine de 22 de Julho)

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