Da total falta de vergonha na cara e da necessidade de um aggiornamentto
Na homilia de ontem, que tratou, entre outras coisas, das vocações sacerdotais e da renovação dos votos de celibato, Bento XVI afirmou que os cristãos deveriam ser pessoas que lutam e se insurgem contra injustiças. Para além disso, afirmou que «Hoje, é importante que os cristãos se submetam à lei, que é a fundação da Justiça». Um observador mais incauto pensaria que, aproveitando esta época de renovação e renascimento, o Papa se iria em seguida referir ao encobrimento pela hierarquia da Igreja dos crimes de pedofila cometidos por membros da ICAR e exigir que todos os implicados respondam pelos seus crimes. Ou, pelo menos, insurgir-se, ao vivo e a cores, contra as injustiças que durante décadas a sua igreja cometeu contra os muitos milhares de vítimas de abusos sexuais por vocações sacerdotais nada fiéis aos seus votos e apelar à luta pela reparação dessas injustiças.
Estas reacções imbecis da hierarquia da Igreja, que parece não perceber que a sua autoridade «moral» está seriamente abalada, estão a levar à debandada dos crentes, desiludidos com a sua Igreja embora muitos deles não com a religião. O problema é para onde vão esses muitos crentes desiludidos e isso explica que, como refere o Times de hoje, «Mesmo entre os ateus mais famosos do mundo, a crise de fé entre os cristãos [católicos] na Europa, foi recebida com preocupação».
Este artigo deveria ser lido pelos inflamados que por norma nos invadem as caixas de comentários sempre que se critica a ICAR, para ver se percebem de uma vez por todas que o que está em causa nesta história, do encobrimento dos crimes de pedofilia volto a dizer, é a impunidade de que goza a Igreja. A maioria dos ateus, - como está subjacente ao artigo de Ferreira Fernandes «Abriu a caça aos padres», não está a atacar a Igreja mas sim o seu estatuto fora da lei - e a mostrar o que deveria ser óbvio: a hipocrisia moralista de quem se acha qualificado para determinar como vivem todos os outros ditando as leis dos países em que o catolicismo tem poder político. Em particular, porque traduz o que sinto, reproduzo a reacção de Richard Dawkins:
«Não há cristãos, tanto quanto sei, explodindo edifícios. Não tenho conhecimento de quaisquer suicidas cristãos. Não tenho conhecimento de qualquer denominação cristã importante que acredite que a pena para a apostasia é a morte. Tenho sentimentos mistos sobre o declínio do cristianismo, na medida em que o cristianismo pode ser um baluarte contra algo pior».
E esse algo pior pode ser, por exemplo, o aumento de importância das denominações cristãs terroristas, que acreditam que a apostasia deve ser castigada com pena de morte ou que os «abortistas» devem ser assassinados. Ou da cientologia. Ou, como tão bem sabe o autor da série do Channel 4 intitulada «Escravos da superstição: os Inimigos da Razão», das patetadas New Age de que trata o documentário:
«Há duas formas de olhar o mundo - através da fé e superstição ou através do rigor da lógica, observação e evidência, por outras palavras, através da razão. A razão e o respeito pelas evidências são preciosas, a fonte do progresso humano e a nossa salvaguarda contra fundamentalistas e aqueles que lucram pela deturpação da verdade.
No entanto, hoje, a sociedade parece em fuga da razão. Sistemas de crenças aparentemente inócuos mas completamente irracionais, da astrologia ao misticismo New Age, da clarividência às medicinas alternativas, estão em franca expansão.
Richard Dawkins confronta o que vê como uma epidemia de pensamento irracional e supersticioso».
Ou seja, falhada a coisa que deveria ter sido o concílio Vaticano II, diria que é mais que nunca necessário um aggiornamentto consequente, em particular que consolide a laicidade - o escândalo da pedofilia mostra bem que a ICAR tem de aceitar finalmente que se deve submeter ao Direito dos Estados e não ulular que esse Direito deve estar subjugado aos seus ditames.