Sobre ter ou não ter razão
Andam todos a dizer que o Governo esteve mal porque devia ter tido a coragem da Irlanda e anunciado corte radicais muito mais cedo. Este raciocínio enferma de vários erros.
Diz-se que as agências de rating e os mercados ficaram satisfeitos com a 'coragem' da Irlanda e penalizaram Portugal por não ter seguido o mesmo caminho. Terão razão? Não creio. Parece-me evidente que estas 'autoridades' - e quem as invocou como representando a voz da razão contra a cegueira deste governo - foram desautorizadas pelos extraordinários resultados do primeiro trimestre, ontem divulgados. Com um crescimento homólogo de 1% (o mais alto de toda a Europa) o tal PEC que não chegava, feito pelo tal governo que se diz estar em estado de negação, afinal parece que poderia ser mais do que suficiente para atingir os objectivos que são exigidos a Portugal. Poderia…pois a UE, como contrapartida pelo fundo de estabilização anunciado no domingo, passou a exigir que Portugal faça algo que, não só não parece necessário, como pode mesmo ser contraproducente, uma vez que é expectável que prejudique a economia Portuguesa, forçando-nos a regressar à recessão. Se tal vier acontecer, peço coerência aos críticos deste governo: não culpem quem fez tudo para adiar medidas estúpidas e tecnicamente erradas.
A Irlanda, a corajosa Irlanda, a tal que Portugal devia ter imitado, até pode ter 'saído da fotografia', como disse ontem Ricardo Costa, mas a sua economia está um desastre e não se recomenda. Os últimos resultados conhecidos, os do 4º trimestre de 2009, mostram uma do queda do PIB de 2,3. Não se conhecem os resultados do 1º trimestre de 2010, mas não consta que sejam positivos, sobretudo se considerarmos o estado calamitoso do seu sector financeiro e o facto de este país, à semelhança de Espanha, ter tido um crescimento assente numa gigantesca bolha imobiliária. Modelo a seguir? Não obrigado.
Portugal agiu quando tinha que agir, isto é, quando a Europa exigiu medidas adicionais - não quando os mercados, as agências de rating ou os portugueses masoquistas e seus economistas iluminados as pediam. Não concordam? Então comparem, hoje, os spreads da Irlanda com os de Portugal. Será que faz sentido continuar a elogiar a 'coragem' Irlandesa? Não faz, porque nunca fez qualquer sentido agir sem uma efectiva coordenação ao nível da UE. Se Portugal tivesse feito tudo antes, porventura hoje teria que tomar medidas ainda mais radicais do que aquelas que efectivamente foi obrigado a tomar. Agir isoladamente, ou, como dizem os masoquistas, 'não andar a reboque dos outros', não serviria de muito e dificilmente teria acalmado os mercados.
O governo sempre acreditou na bondade das suas políticas, tendo sido trucidado pelo seu 'irrealismo'. O crescimento anunciado ontem devia levar-nos a reflectir, não sobre o que tem dito o governo, mas sim sobre os magníficos modelos que são usados para 'prever' e para formular juízos sobre as economias de um país. É importante lembrar que todos criticavam o governo pelas fracas expectativas de crescimento e diziam, ou melhor, afirmavam, que íamos continuar a divergir da Europa. O problema é que estes modelos se baseiam em comportamentos passados, não sendo capazes de incorporar os efeitos das medidas de política económica tomadas pelos governos no presente.
Aqueles que dizem que Portugal teve uma década perdida, sobretudo quando comparando com Irlanda, Espanha e Grécia, deviam pensar no seguinte: será que as taxas de crescimento destas três economias são relevantes para prever comportamentos futuros? Não será mais correcto dizer que estávamos perante crescimentos insustentáveis, dependentes de bolhas, que não podem servir de termo comparativo e muito menos usados como argumento contra Portugal?
Façamos um esforço e pensemos na evolução da economia Portuguesa entre 2005 até ao início da crise: pensemos no crescimento sustentado das exportações e na alteração da sua estrutura, pensemos na aceleração do crescimento do PIB, pensemos na criação de 133 mil empregos e na descida da taxa de desemprego, pensemos no plano tecnológico, pensemos nas renováveis e na política energética do governo, pensemos no investimento em I&D e na qualificação dos portugueses, pensemos na modernização das escolas. Pensemos em tudo o que este governo fez antes da crise (e que, na medida do possível, continua a fazer) para aumentar o potencial de descimento da economia Portuguesa - e, por favor, tentemos ser justos e reconheçamos que o tal optimismo do governo e a 'retórica' de modernizar Portugal podem afinal não ser assim tão disparatados como muitos, hoje, querem fazer crer.
Este governo não tem apenas de enfrentar a maior crise desde a grande depressão. Infelizmente, este governo também teve de lidar com agências de rating e mercados pró-cíclicos e irracionais, com uma oposição irresponsável e oportunista e com uma UE refém de uma ideologia monetarista, hesitante e incapaz de perceber que uma crise orçamental que se deve sobretudo à queda da receita fiscal e ao facto dos Estados terem sido forçados a substituir o sector privado não se combate cortando na despesa e no investimento público.
Pensem nisto tudo. E repensem o que significa de ter ou não razão num contexto irracional.