O Público online cita hoje com algum detalhe declarações proferidas por Passos Coelho na Faculdade de Direito Lisboa, convenientemente rodeado de gorilas e jotinhas:
“A Europa construiu[-se] também como um dos exemplos de Estado social avançado, em que as pessoas adquiriram níveis de protecção contra riscos sociais e económicos muitos elevados”, mas (…) essas protecções foram adquiridas durante “um tempo em que a Europa crescia a um ritmo bastante vigoroso e em que a nossa demografia ajudava nesse crescimento”. Neste momento, lembrou, nenhuma das duas premissas se verifica e por isso levantam-se as perguntas: “Como é que podemos assegurar que os recursos estão disponíveis para aqueles que precisam mais e como é que temos a certeza de que os impostos que os cidadãos pagam e que depois o Estado redistribui correspondem a uma correcção das injustiças na distribuição do rendimento?”
Habituámo-nos, talvez precipitadamente, a encarar Passos Coelho como alguém que mente compulsivamente, desdizendo sistematicamente o que afirmou na véspera para pouco depois regressar à versão original, tudo isso sem revelar, como o próprio reconhece, o mínimo embaraço sempre que é apanhado em falso.
Este comportamento persistente recorda-me irresistivelmente as palavras que o então treinador do Benfica Graham Soughness pronunciou a respeito de Vale de Azevedo: “This man is a dangerous man. He lies while looking at you in the eye.”
Acontece que Passos não é Azevedo – este último um evidente psicopata que acredita piamente nas falsidades que profere. Não vislumbro um desequilíbrio psicológico no Primeiro-ministro; pelo contrário, parecem-me evidentes as suas carências cognitivas.
Passos Coelho é, por um lado, um penteado piroso, um olho de carneiro mal morto e uma voz bem colocada; por outro, uma suprema empáfia suportada por uma capacidade sintáxica de produzir frases ordenadas sem correspondência numa semântica susceptível de produzir qualquer sentido.
É manifesto exagero acreditar-se que Passos mente, visto que isso implicaria reconhecer que faz alguma ideia do que diz. Passos adquiriu uma longa prática de décadas a discursar para patetas da JSD. Ora, o cerne desse tipo de intervenção discursiva consiste em jamais correr o risco de ficar sem nada para dizer, mesmo que – ou até de preferência quando – o que se diga seja nada. A palavra, nessas circunstâncias, não passa da negação do silêncio, e isso apenas e só na medida em que ela confere um poder sobre quem não foi bafejado por uma idêntica capacidade para debitar uma grande quantidade de inanidades durante um longo período de tempo.
O cérebro de Passos Coelho é uma das mais perfeitas máquinas de registar frases feitas e lugares comuns e de reproduzi-las sequencialmente nas mais variadas circunstâncias, certo de que disporá sempre de uma audiência que murmurará, embevecida: “Não percebi nada, mas que bem ele fala!”
Estamos, pois, conforme prefiram, perante um génio imitativo ou um idiota reprodutivo.
Uma acção que contradiz directamente a campanha e programa eleitoral com que este governo foi eleito. Um constante elogio do desemprego e da probreza, como se estes tivessem características redentoras. Uma lógica divisionista como forma de atacar a solidariedade que deve unir uma sociedade. Um apelo ao pior do passado, no desejo inconfessado de um Portugal pobre, humilde e resignado. Uma obsessão com as finanças igualada apenas pela capacidade de falhar todas as metas. Uma Europa que insiste em remédios não apenas ineficazes, mas contraproducentes.
Apesar das bizarras circunstâncias em que ocorreram, ninguém duvida que as legislativas de 2011 decorreram no respeito pela legalidade. Isto aqui não é a Venezuela, tampouco a Florida em 2004.
Vai daí, Passos Coelho deduz que não pode ser questionada a legitimidade do seu governo para fazer o que lhe der na real gana. Não espanta que o Primeiro-ministro ignore a diferença entre legalidade e legitimidade; porém, a avaliar pelo que por aí se escreve, dir-se-ia que o desconhecimento é generalizado.
Já se sabe que o calcanhar de Aquiles da democracia representativa é a latitude teoricamente vastíssima de que os governantes dispõem para interpretar o seu mandato. Um representante não é, nem pode ser, um mero “comissário” (bela expressão inventada em 1917 por Trotsky num momento de singular inspiração), antes beneficia de considerável e indispensável autonomia no desempenho das suas funções políticas.
Terá essa autonomia limites? Quem se der ao trabalho de ouvir os primeiros cinco minutos do debate televisivo que em 2011 opôs Passos Coelho a Sócrates sentir-se-á pelo menos inclinado a achar que sim, tal o contraste entre o que na altura jurou e o que pouco depois se decidiu a fazer.
Contra isto argumentam muitos que os políticos sempre prometem coisas que sabem ser impossíveis, e que, por conseguinte, tudo isto deverá de algum modo ser considerado normal. Mas eu desafio qualquer um a mostrar-me que alguma vez se tenha visto, em Portugal ou em qualquer outra democracia que se respeite, algo que sequer se aproxime desta total, sistemática e – pior ainda – crescente divergência da acção governativa em relação às ideias e ao programa anunciados antes e durante a campanha eleitoral.
E é aqui que surge o problema da legitimidade como algo bem distinto da mera legalidade. Num certo sentido, a legitimidade está muito para além da legalidade, na medida em que é o seu sustentáculo derradeiro.
Nas palavras de Max Weber, a legitimidade é “a razão profunda pela qual, em qualquer sociedade estável e organizada, há governantes e governados, e por que a relação entre uns e outros se estabelece como uma relação entre o direito, por parte de uns, de governar, e o dever, por parte dos outros, de obedecer.”
Ora a legitimidade assenta, já Locke o afirmava, no consentimento dos governados, por sua vez dependente da convicção de que quem exerce o poder o faz no entendimento, mesmo que discutível, de que se esforça o mais que pode e sabe por garantir o bem-estar colectivo.
Mas haverá, nos dias que correm, alguém minimamente atento ao que se diz nos mais variados círculos da sociedade portuguesa que ainda conserve a ilusão de que essa convicção, esse consentimento e, logo, essa legitimidade subsistem?
Quem sabe se o esclarecimento definitivo desta dúvida não chegará já no dia 2 de Março?
Depois de o Governo se ter rendido à realidade – o desastroso último trimestre de 2012 colocou o desemprego nos 17% - e admitido que precisa de mais tempo para o ajustamento, o País questiona-se sobre como foi possível chegar aqui. Há três hipóteses para explicá-lo.
Hipótese 1: foi um erro. A "aprendizagem do padrão de ajustamento da economia" revelou-se mais complicada do que previsto, e a realidade teima em não respeitar os modelos de Gaspar.
Hipótese 2: foi uma manobra tática. A estratégia inscrita no OE2013 permitiria a Gaspar ganhar "credibilidade" junto da ‘troika' e dos mercados, mostrando coragem para destruir o necessário, mesmo que tivesse de assumir um cenário fraudulento para 2013; assim, o emprego sacrificado com a queda de atividade no fim de 2012 - e que teria sido poupado se o OE2013 não tivesse lançado o pânico sobre famílias e investidores - serviu de moeda de troca para o reforço da "credibilidade".
Hipótese 3: fez parte de uma estratégia. O alegado desastre é, afinal, um indicador avançado de futuros sucessos, dado que da explosão do desemprego resultará (i) menos poder de compra e menos importações, logo uma balança comercial mais equilibrada; (ii) menos consumo, menos receita e um défice maior, logo justificação para cortar nos serviços públicos; (iii) trabalhadores mais apavorados e salários em queda, logo um país mais competitivo; (iv) menos receita contributiva, logo mais cortes nas prestações sociais.
Nesta hipótese - versão da estratégia de Andrew Mellon, o secretário de Estado do Tesouro do Presidente Hoover que, em plena Grande Depressão, propunha "liquidar o trabalho, liquidar as ações, liquidar os agricultores, liquidar o imobiliário", de modo a limpar "a podridão do sistema" -, o falhanço representa, para a direita, um assinalável sucesso.
Não é preciso concluir se Gaspar é um analista inexperiente, um jogador maquiavélico ou um estratega sádico para saber que, desde já, se impõem duas consequências: primeiro, que já não reúne condições para continuar como ministro das Finanças. Segundo, que, com o que sabemos hoje das economias portuguesa e europeia, o nosso ajustamento, precisa, para ser credível, não só de mais tempo, mas de ser qualitativamente diferente.