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jugular

to be or not to be burro comás casas

que a identidade dos discriminados é criada pela discriminação é dos livros. seria suposto que todas as batalhas contra a discriminação não só tivessem isso em mente como buscassem como objectivo último afirmar o facto de uma característica discriminada não definir nada -- ser só isso, uma característica discriminada.

 

desde que comecei a reflectir e a escrever publicamente sobre o movimento lgbt (muito antes de se usar essa expressão, movimento lgbt), em 1993, partindo do debate nos eua sobre o banimento de homossexuais das forças armadas americanas -- um banimento que bill clinton tinha prometido, em campanha, revogar, mas que acabou por permanecer através da política 'não digas, não perguntes' -- que me deparei com o paradoxo de afirmar a homossexualidade e a existência de uma 'comunidade homossexual' quando essa afirmação, operativa para efeitos de luta, acabava por incorporar o preconceito: o de que ser homossexual tornava alguém um ser 'à parte'. isto para não falar da questão mais funda: o que é isso de ser homossexual (ou heterossexual, ou bisexual)? e como é que consigo lidar com o facto de precisar de vincar, expor, afirmar isso, se, para mim, o fim último desta luta é que não seja sequer um assunto?

 

em portugal, em que tudo tende a chegar tão tão tarde, parece que a discussão chegou agora -- e de uma forma particularmente estúpida e desinteressante. a forma de alguns, que se arvoram verdadeiros da luta verdadeira, de dizer 'chega para lá' àqueles que denominam como outsiders instrumentalizadores oportunistas: os que, dizem os auto-proclamados genuínos combatentes, não 'sendo', querem dizer aos que 'são' como lutar.

 

o pretexto, neste caso, foi o outing. quem o defende e é criticado por o defender responde dizendo a alguns críticos -- neste caso, eu e daniel oliveira -- que não temos o direito de dizer aos homossexuais como devem lutar pelos seus direitos. 

 

a situação é tanto mais divertida quanto a razão essencial pela qual eu e o daniel criticamos o outing é ser uma identidade-jacking: um assalto ao direito que cada um tem de se afirmar e definir sexualmente como bem lhe aprouver. ao afirmarem publicamente que eu e o daniel não fazemos parte das categorias discriminadas que alegamos defender, os que o afirmam estão a fazer-nos um outing. mas estão também a fazer uma outra espécie de outing, a de si próprios como totalitaristas. não só por decidirem assim que têm o direito de saber o que eu e daniel somos na nossa vida sexual (e, que eu tenha dado conta, nenhum de nós afirmou publicamente) e de o dizer, mas sobretudo por certificarem que a orientação sexual e/ou as práticas sexuais definem a nossa capacidade e legitimidade de opinar política e publicamente sobre matérias tão políticas e públicas como a discriminação das pessoas que não são percebidas como alinhando com a 'norma' e as formas de combater essa discriminação -- e, mais, que ao opinarmos sobre isso estamos, na nossa situação de 'normais', a 'arvorar-nos' em 'protectores' dos 'anormais'.

 

o pungente destas afirmações, que incluem o mau gosto de insinuar que eu e o daniel ganhámos não sei o quê à custa dos nossos 'protegidos', consiste, é claro, numa incorporação de menoridade. quando digo, por exemplo, que é cómico dizerem que instrumentalizei a luta lgbt quando comecei a escrever sobre o assunto antes de haver luta lgbt em portugal, acusam-me de estar a puxar dos galões. como quando me garantem que não me devem nada, e que eu é que, pelo que ganhei ao participar nesta luta, devia bater a bolinha baixa. é quem me acusa que me está a colocar na posição de alegada superioridade, a de alguém que fez coisas 'pelos outros' e espera 'gratidão'. 

 

ora, como aliás ao longo destes anos tive ocasião de explicar a muitos homofóbicos, não me importando portanto de explicar a quem afecta sofrer da fobia reversa, não vi nunca esta luta como uma luta 'por outros'. nunca me senti 'outra'. esse é o fundamento da luta, para mim. no combate contra a discriminação com base na orientação sexual como em relação a outra qualquer. é por mim que luto, por mim e por toda a gente. lutar pelos direitos humanos significa crer que somos iguais, todos a valer o mesmo e portanto com os mesmos direitos.

 

é antes de mais por defender os mesmos direitos para todos que eu, que defendo o direito de cada um a ser dono de si próprio e a definir-se como bem entender, se entender definir-se, e ao respeito pela sua intimidade e privacidade, execro o outing. mas, para além disso, como escreveu o daniel, o outing é uma forma de reiterar o preconceito: expor a orientação sexual de que alguém supostamente se envergonha é instrumentalizar essa vergonha. 

 

e se percebo e até posso simpatizar com a ideia de que por vezes o terrorismo é um meio legítimo -- e pode ser mesmo o único -- de luta contra tiranias, parece-me óbvio que, chegados aqui, a 2014 e ao momento em que o último direito a conquistar é o da parentalidade (importantíssimo que é, não é isso que está em questão), depois de termos conquistado todos os outros, é no mínimo estúpido proclamar que isto só lá vai à bomba. mais estúpido ainda quando a coadopção só não passou no parlamento in extremis, sendo óbvio que passará da próxima vez -- se cada um de nós, nas urnas, fizer o que tem de fazer para isso, em vez de, como tantos que agora rasgam as vestes, afirmar que 'são todos iguais' e 'tanto faz votar nuns ou noutros'.

 

para concluir, então, um conselho que deviam esse sim agradecer-me, ao contrário de tudo o resto: não sejam burros. isso, sim, é uma característica pela qual sou a primeira a discriminar e em relação à qual, como ao mau-caractismo, afirmo todo o meu preconceito. é-me igual ser 'acusada' de ser homossexual por escrever e falar e agir contra a discriminação dos homossexuais ou ser 'acusada' de não o ser e portanto dever estar inibida de fazê-lo. não preciso da vossa licença para nada, como nunca precisei da de ninguém. e deus me livre de algum dia ter esperado 'gratidão' ou qualquer idiotice do género. está tudo na vossa cabeça, tão pequenina. a cabeça de quem, lamento dizê-lo, estará perdido no dia em que desaparecer o labéu de discriminado -- quem serão vocês nesse dia? contra quem arremeterão? que raiva vos vai alimentar? 

 

get a life, pazinhos. 

 

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