palavra de ordem
em nome do povo, nós, o povo.
a ordem das coisas, como em clero, nobreza, povo, ou em burguesia e povo, ou povo e rei, povo e governo.
uma palavra que diz ‘sou do povo’ como quem diz ‘não sei nada nem de nada, não sou ninguém’. uma palavra que manda mandar: ‘o povo é soberano’; ‘a decisão é do povo’.
uma palavra que reclama poder: ‘em nome do povo’. Uma palavra que deseja império e se faz discurso: ‘o povo unido/jamais será vencido’.
uma palavra ordenada – que aceita ordens, que acata um destino, uma natureza, uma função. Que legitima – usos, tradições, regimes, imobilismos, repressões e revoluções.
uma palavra vazia e sobrepovoada, com espaço para todas as projecções. uma palavra menorizadora, apoucante, insultuosa: povaréu, poviléu, povinho, como turba, gentinha, desmunidos, ignaros. uma palavra datada, abusada em manifestos e cabeçalhos, em nacionalismos, autoritarismos, guerras e chacinas.
uma palavra com inclinação: sempre dita de cima ou de baixo, tem o travo de uma estratificação implícita, não inclusiva, condescendente. sempre uma oposição qualquer, sempre qualquer coisa de fora, sempre uma fronteira – o povo de deus, o povo alemão, o povo russo, o povo francês, os povos africanos, os povos do oriente (não se diz ‘o povo do mundo’ ou ‘o povo humano’: soa mal).
uma palavra paisagem – rostos e corpos, uma certa sujidade, uma condição, trabalho, esforço, força, esperança, resignação. Uma palavra irónica, como em ‘bom povo português’, fantasma da sua generosidade. uma palavra de fora, épica, política, utilitária, prisioneira de significados, sem o radical estremecimento de uma pertença: usa-se, não se é. uma palavra amarrada ao colectivo, à vozearia das massas em marcha, ao esmagamento do eu – e por isso avessa à liberdade, à radical afirmação da vontade e do ser.
uma palavra que funda a ideia de democracia -- do povo, pelo povo e para o povo – mas justa e lentamente substituída pela noção de cidadania, que lhe despede as ressonâncias totalitárias e étnicas e conforma a adequada relação entre eu e os outros e o poder que partilhamos.
uma palavra exterior e histriónica, grosseira e básica.
excepto quando, na exactidão visceral de uma voz, se faz perfeita: ‘povo povo eu te pertenço/deste-me alturas de incenso/mas a tua vida não’.
(publicado em 'o que é o povo?', coordenação josé manuel dos santos, livro publcado no âmbito da exposição povo-people, fundação edp, junho 2010)