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jugular

apocalipse assim que tiver vagar

às vezes leio comentários em páginas de jornal e fico a pensar que escrevo numa língua diferente da daquelas pessoas que, no entanto, também usam o português.

muito diferente é ler os posts que vários indivíduos, todos de uma direita, digamos, pouco esclarecida escreveram sobre o meu texto de molenbeek. aquilo não é iliteracia, nem sequer estupidez -- não acredito que mesmo eles sejam assim tão estúpidos, até há ali malta com doutoramentos. não; é ódio.

a fatwa é antiga, mas os jihadistas andavam calmos. e agora regressaram, em força. devo, para seguir a lógica habitual destas coisas, ter bombardeado lá uma das cenas mais queridas deles. vai daí, o mullah chamou-os outra vez para a guerra santa.

devo andar a fazer alguma coisa muito bem. a ver se faço ainda melhor. adoro o cheiro da raiva dos brutos de manhã. e à tarde, e à noite.

bruxelas, 24 de março de 2016

a grande dificuldade de um repórter é destrinçar, no que sente e aprende, o que é dele próprio e do que observa.

não chego a bruxelas como quem nunca tivesse estado em cidades pós atentados. se em paris em novembro já trazia a bagagem de janeiro, aqui chego com toda a liturgia parisiense na memória, as perguntas e respostas em eco. é de mim ou dos belgas, este cansaço triste, este nevoeiro que afasta a emoção? é de mim ou dos belgas esta vontade de silêncio, de dizer - não me perguntem como lidamos com isto, não me perguntem por que isto sucede, não me perguntem como podemos evitá-lo, se podemos evitá-lo'?

talvez tenha sido só acaso que cada pessoa com quem falei parecesse tão perdida, tão sem pistas como eu. que o discurso torrencial dos franceses contraste com a hesitação e contenção dos belgas. mas seria possível reagir ao terceiro atentado nesta zona da europa em orgulho e força? é o terceiro em menos de ano e meio, e o facto de ter sido perpetrado pela mesma célula que o segundo, o de novembro em paris, só adensa a noção de impotência, de fatalidade.

caminhar nas ruas desta cidade com soldados de camuflado, capacete, colete anti bala e máscara, com metralhadoras enormes nos braços, remete-me para imagens de outras reportagens. de há 23 anos em belfast, há 24 anos em jerusalém. quando o horrível passa a ser normal, quando cada saída à rua, cada viagem de metro, comboio, avião é um risco cujo cálculo já integrámos, já nem fazemos.

não vale a pena perguntar se podemos viver assim, porque sabemos que sim: outros vivem assim e muito pior, e vivem. e quando não vivem dizemos-lhes, nas nossas fronteiras, que o problema é deles.

os traques do Gama cheiravam a rosas

Não duvidem que sim. Quem sabe, às rosas produzidas pelo prof. Tournesol n'As Jóias da Castafiore, já que se trata de matérias com evidente afinidade. Nem estou a ver como não. Aliás, os mal-cheirosos só apareceram depois, muito depois. Há quem diga que foi com os Filipes, há quem afirme que foi com os liberais, e há quem jure a pés juntos que foi só em 1974. Nesses tempos gloriosos, não, nunca. A ver pelas reações da notícia que veio a lume há dois dias, a do anúncio da alegada descoberta dos destroços de uma nau portuguesa em Omã, nem outra hipótese é, sequer, de considerar. Nesses tempos, tudo o que os portugueses faziam era heroico e glorioso e enche-nos (ou deveria encher-nos) de orgulho. Como diz um comentário à notícia, "É este o Portugal que me enche de orgulho, é neste país que me revejo, é esta a Pátria de nossos valerosos antepassados que Camões tantas vezes sublimou!". Outro diz "Notável descoberta reveladora uma vez mais da nossa capacidade, enquanto Nação", há quem fale da "traição judaica que vem desta altura" e quem lamente que hoje Portugal seja "governado por um indiano". Por fim, alguém remata e sintetiza todo o fervor pátrio em poucas palavras: "O portugal Gigante. Nao havia esquerda, nem politicamente correcto, nem paneleiros. Havia HOMENS". Até o insigne deputado Carlos Abreu Amorim não contém a sua emoção patriótica e deixa escapar um "Histórias de orgulho dos povos que têm história", na sua página do Facebook. É que, pelos vistos, há povos que não a têm; só os merecedores dela, concluí eu. Mas depois, já no Twitter, emendou a mão dizendo que "há povos que têm mais história que outros" e que nós "temos muita". Aqui, confesso, esgotaram-se-me os argumentos; já quando era puto tinha dificuldade em discutir com o senhor da mercearia.

 

Bom. Eu cá não gosto muito de me pronunciar sobre glórias e heroísmos, mas posso dizer alguma coisa sobre orgulho. O orgulho é uma coisa magnífica: não custa nada, não precisa de ser aprendida ou treinada, não é parca nem rara e faz os seus possuidores sentirem-se no topo do mundo. Se é justificada ou não, é lá com cada um. Eu posso achar é que os faz passar por figuras ridículas, mas isso é apenas a minha opinião. Mas já agora, e se não tomar muito tempo, talvez fosse interessante olhar um bocadinho para os tais motivos de tão hiperbólico "orgulho". Na verdade, o que foi achado (assumindo que se confirma a autenticidade da atribuição dos vestígios às naus de Vicente Sodré) foram apenas vestígios de naus portuguesas. Motivo de orgulho? bem... com certeza que sim, mas as mesmas faziam parte da 4ª armada que partiu de Lisboa para a Índia, portanto, é um orgulho assim já a dar para um bocejante déjà vu. Terá a armada realizado grandes serviços, feitos de navegação notáveis? Nem por isso, era uma armada de patrulha que Vasco da Gama deixou na Índia quando ele próprio regressou à Europa, para controlar a situação e proteger Cananor e Cochim dos ataques de Calecute. Porém, o capitão Vicente Sodré, aparentemente em desobediência ao sobrinho almirante, preferiu ir fazer razias aos navios muçulmanos que iam e vinham do Mar Vermelho. Se fossem navios árabes a fazer o mesmo no Algarve - que o faziam, não duvidemos - seriam por cá chamados de "piratas"; mas como eram portugueses no Índico, bom, nesse caso são heróis que nos enchem de "orgulho".

 

Vicente Sodré comandava a pequena frota e ancorou junto às ilhas de Kuria-Muria (como eram chamadas na época). Os portugueses foram alertados da aproximação de uma tempestade pelos habitantes da terra. Podiam ter procurado abrigo, tiveram tempo, oportunidade, meios e informação para isso. Não o fizeram. Ou pensaram que as âncoras e a robustez das naus seriam suficientes para resistir à tormenta, ou temeram que uma retirada os fizesse perder presas e saques. Numa palavra, ou foram estúpidos (a bazófia nacional, ao contrário do heroísmo, não esmoreceu por cá, como se vê), ou gananciosos. Vicente Sodré, enquanto comandante da armada, foi portanto incompetente e responsável pela perda de dois navios e das vidas de muitos dos  seus homens. Nada disto me suscita especial orgulho, mas isso deve ser cá defeito meu, a juntar à evidente falta de patriotismo. Adiante: o resultado - naufrágio de duas naus - era previsível e está à vista. O irmão de Vicente Sodré, Brás, que comandava a 2ª nau (S. Pedro, também afundada com a Esmeralda), apressou-se a mandar matar os pilotos árabes, aparentemente em vingança pela morte do irmão. Já então a culpa era sempre dos técnicos e nunca dos líderes, mas pronto: eis o excelente comportamento de um herói, merecedor dos maiores orgulhos, para quem assim achar.

 

Bem. Ok. Vá lá, Vicente Sodré e os seus homens tinham defeitos, como todos nós. Eram subalternos que aproveitaram a ausência do patrão para umas farras e a coisa correu mal, ups!, falta de calo, azar, inexperiência, a gente desculpa. E se o insigne Vasco da Gama, o tal dos traques aromáticos, estivesse presente? Ah caramba, aí tudo teria sido diferente, a glória tinha escorrido em abundância, seria uma indigestão de heroicidade. Certo? Hmmm. Se os destiladores de orgulho conhecessem os pormenores dessa estadia do Gama na Índia, antes do tal regresso a Portugal, não sei, se calhar seriam obrigados a segunda destilação, quiçá mais refinada e discreta. É que a dita estadia (a 2ª na Índia, relembre-se) foi particularmente sanguinária e brutal. Como diz o cronista Gaspar Correia, o almirante havia voltado à Índia empenhado em, antes de mais, vingar as afrontas que sofrera na primeira viagem e as que padecera Pedro Álvares Cabral. Mais adiante, o mesmo cronista descreve um episódio sintomático. Sintomático de quê? De heroísmo e glória? Eu acrescentaria: decerto (e especialmente aromáticos), mas também do espírito ecuménico e de tolerância lusitano cuja tradição o nosso PR tão bem relembrou na sua tomada de posse. Aqui vai: primeiro torturou o embaixador (um brâmane hindu) do Samorim de Calecut para lhe extorquir informações. Depois fez-lhe uma gracinha antes de o devolver ao seu senhor, como presente de despedida: "mandou cortar os beiços de cima e de baixo [...] e mandou cortar as orelhas a um cão da nau, e as mandou apegar e coser com muitos pontos ao brâmane no lugar das outras".

 

Já anteriormente atacara um navio carregado de peregrinos muçulmanos que vinham de Meca (sobretudo mulheres e crianças) para Calecut e recusara todas as ofertas de resgate (as riquezas do navio eram imensas) pelas respetivas vidas. Em vez disso, mandou imobilizá-lo e afundá-lo a tiros de bombarda e, depois, pegar-lhe fogo. As mulheres gritavam e mostravam dinheiro e jóias, pedindo misericórdia para resgatar as suas vidas; "algumas tomavam nos braços os seus filhinhos e os levantavam ao ar, persuadindo-o assim que tivesse piedade daqueles inocentes". O herói Vasco da Gama assistiu a tudo de uma escotilha e manteve a sua postura impassível. Não sou eu quem o diz, é o português Tomé Lopes, que estava a bordo e assistiu a tudo. O mesmo que registou que os eventos tiveram lugar a 3 de outubro de 1502, dia que, como afirma, "hei de recordar todos os dias da minha vida". Eu entendo. Quem assiste a tamanho banho de glória não se esquece e, 500 anos depois, não faz esmorecer o gorgulho a quem o relembra. Orgulho, orgulho, bolas, maldito corretor. Os traques do Gama cheiravam a rosas? Enganei-me, queria dizer cheiram.

“Sabemos que direitos humanos sempre houve, só que … não eram de todos os humanos.” - José Pedro Monteiro

A propósito dos textos de Souto Moura e Paulo Almeida Sande, hoje, no Público e Observador, sobre assuntos diferentes. É muito discutível, para não dizer errado, falar de direitos humanos como constituindo um processo contínuo e gradual, que se arrasta desde tempos imemoriais até aos nossos dias. Não, eles não existiram sempre nem foram gradualmente abrangendo mais pessoas. Eles são uma construção político-jurídica que emergiu num contexto histórico preciso. A ideia de que existe um cardápio de direitos individuais e invioláveis que existe acima e paralelamente ao direito dos estados é muito recente, teve a sua primeira confirmação formal em 1948 e demorou algumas décadas a ser constituída como argumento de mobilização política fundamental, apesar do termo ter sido usado anteriormente em diferentes contextos[1]. 


Antes disso houve muitas outras coisas: direitos de cidadania, direitos colectivos das minorias, uma história permanente de tensão para se definir a quem eram outorgadas garantias, pelo estado ou pelos estados, que andou constantemente para trás e para a frente, para decidir quem estava dentro e quem estava fora (como no caso dos escravos de Saint Domingue ou dos "indígenas" das várias colónias). 


Também a história posterior a 1948 mostra que os direitos humanos constituíram um permanente terreno de disputa para definir os seus limites e, ao contrário da conversa repetida, não foram uma invenção exclusivamente ocidental. Em 1948, eram precisamente os representantes ocidentais que abusavam do hoje chamado "relativismo cultural" para limitar o seu alcance. René Cassin, considerado justamente um dos fundadores da declaração universal dos direitos humanos, por exemplo, alertava para os perigos que a carta dos direitos humanos representava em contexto colonial, “pondo em risco a ordem pública” e “sujeitando povos diferentes a obrigações uniformes”. Por oposição, o papel de homens como Charles Malik, do Líbano, ou Carlos Rómulo, das Filipinas é hoje conhecido[2]. Também por cá, os direitos humanos não deixaram de ser instrumentalizados politicamente. Se eram mobilizados para atacar estados hostis como os socialistas ou os estados recém-independentes, eram também vistos com desconfiança por especialistas como Silva Cunha que viam na ordem do pós-guerra “uma descaracterização do direito colonial internacional”, isto é, uma estrutura jurídica internacional que replicava o elemento de diferença constante das estruturas imperiais[3]. Mais tarde, seriam alguns dos novos estados independentes a querer subordinar os direitos humanos (depois de os terem mobilizado intensamente na luta pela independência) a um direito primacial colectivo de auto-determinação, uma discussão longe de estar terminada acerca dos limites da soberania nacional. Tomando por exemplo o fenómeno global da descolonização, é bom registar que nem aqui se encontra um consenso entre historiadores acerca do seu contributo para a causa dos direitos humanos.

Por isso me parecem espúrios os exercícios de naturalização e essencialização de um espaço tão política e ideologicamente disputado como aquele relativo aos direitos humanos. Fica bem dizer que os direitos humanos são a mais importante invenção da civilização ocidental, imaginando-os a escorrer até à Antiguidade Clássica, ou que sempre existiram. É, sem dúvida, auto-congratulatório. Mas faz mais mal que bem ignorar a fragilidade e temporalidade daquilo que hoje damos por garantido e perene.

 

[1] O livro de Samuel Moyn, Human Rights and the Use of History é particularmente interessante a este respeito.

[2] Roland Burke, Decolonization and the Evolution of International Human Rights.

[3] Joaquim Silva Cunha, O Trabalho Indígena: Estudo de Direito Colonial

 

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