aborto: uma alegoria
Portugal foi um dos últimos países ocidentais a legalizar a interrupção da gravidez, em 2007 - com três décadas de atraso em relação à França, por exemplo. Completados (ontem) três anos sobre a entrada em vigor da lei, é talvez cedo para lhe fazer o balanço: tendo em conta o fenómeno sobre o qual incide, com uma tradição de clandestinidade e opróbrio, é normal que haja um largo período de adaptação às novas regras - o que é dizer que o número de abortos legais pode não ter ainda estabilizado. Há no entanto quem veja na evolução desse número - que partiu de menos de 2000 abortos/ano permitidos pela lei de 1984 (devidos a malformação, violação e perigo para a saúde e vida da mulher e sempre autorizados por critério médico) - causa de alarme e até de revisão da lei. Serão, para alguns observadores, alguns deles médicos, "muitos abortos", e a "aumentar muito". Não estando disponíveis os dados do primeiro semestre de 2010, sabe-se que em 2009 se contaram 19 572 interrupções de gravidez. Destas, cerca de 2000 ter-se-ão devido às causas contempladas pela lei de 1984. Teremos pois cerca de 17 500 abortos de "livre arbítrio" para dois milhões e meio de mulheres em idade fértil (entre os 15 e os 49 anos). Ou seja, sete abortos por cada mil mulheres. É muito? Responder a esta pergunta exige mais que opiniões e ideologias; exige comparações e contexto. Comparemos e contextualizemos, pois. O número de abortos realizados entre 1997 e 2008 em 35 países europeus está disponível no site do Eurostat. Cruzando-o com as projecções de população do mesmo site (actualizadas até 2009), é possível comparar taxas de aborto - entendidas como a percentagem de abortos sobre o total das mulheres em idade fértil. No alto da tabela da Europa Ocidental está a Suécia, com 1,82% (38 049 abortos em 2008 para 2 089 919 mulheres em idade fértil), seguida pela França (213 382 abortos em 2007 - fonte Ministério da Saúde - para 14 406 714 mulheres em idade fértil), com 1,48%, a par com o Reino Unido (219 103 abortos para 14 725 464 mulheres em idade fértil). Segue-se a Noruega (1,26%), a Dinamarca (1,20%), a Itália (0,89%), a Espanha (0,88%) e a Holanda (0,85%, fonte Governo holandês). Portugal situa-se no fundo da tabela, com 0,75%, um pouco acima da Bélgica (0,72%, números de 2007), da Suíça (0,54%, com uma lei que só permite o aborto por critério médico, ou seja, igual à que vigorava em Portugal antes de 2007) e da Alemanha (0,50%). Parece pois que as notícias da calamidade abortiva portuguesa estão a ser muito exageradas. Percebe-se: é uma matéria muito atreita ao exagero, num país muito atreito a ver- -se como calamitoso. Mas querermos ser os piores do mundo esquecendo que o mundo existe é um bocadinho pacóvio de mais - até para nós.