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O grande mistério republicano

Não me interpretem mal: gosto tanto de celebrações como qualquer outra pessoa. Mas tenho esta mania de gostar de sentir que quem celebra sabe ao que veio, sabe ao que está (neste sentido, aliás, as celebrações futebolísticas fascinam-me pela sua genuinidade, por tudo o que possamos criticar no futebol, o que é outra conversa).

 

A República, justiça seja feita à sua coerência, chegou desconhecida e desconhecida se mantém passados cem anos. O que hoje se comemora é um mistério para a esmagadora maioria dos portugueses. Aliás, como verdadeiro mistério, passa ao lado das maiorias e revela-se apenas (ainda que aos poucos e devagar) aos iniciados.

 

O problema não é tanto a ignorância sobre o que significa uma república mas a confusão, gravemente redutora, entre república e democracia. Não tenho a menor dúvida que a grande maioria de pessoas que hoje comemorará o centenário da República o fará pela negativa: sabe que já não há monarquia. E este é o grande problema. Se era apenas um pormenor em 1910, em que estar contra a monarquia era uma óptima maneira de se ser republicano, em 2010, a ideia é ridícula. Contudo, Portugal nunca aprendeu a ser republicano pela positiva. Quando se tenta explicá-la deste modo, quase sempre se redunda na democracia (e isto já é ser simpático).

 

A confusão entre estes dois imponentes conceitos é compreensível mas isso não a torna aceitável. Pelo contrário. Estamos hoje cada vez mais necessitados de distinguir os dois conceitos, pois parece-me que grande parte dos valores ético-políticos que estão em queda na sociedade portuguesa se explicam por uma ausência de espírito republicano, muito mais do que por ausência de um espírito democrático. Simplesmente, a confusão entre ambos torna difícil que se perceba isso.

 

O conceito não ajuda. Varia ao longos dos séculos de um modo assustador, sendo impossível falar do mesmo modo da República romana, das repúblicas italianas ou da III República portuguesa. Mas, novamente, isso não deve impedir a reflexão. Philip Pettit, autor de um livro fascinante sobre a matéria (Republicanism: A theory of freedom and government) faz exactamente o que deveríamos estar a fazer à república em Portugal, um pouco por todo o lado, há muitos anos: problematiza-a entre as grandes correntes político-sociais das últimas décadas, o comunitarismo e o liberalismo, de modo a encontrar um espaço próprio para o republicanismo actual, dentro do seu percurso histórico. Isto nunca foi feito para o caso português e hoje a República permanece desconhecida, uma abstracção que só conseguimos concretizar na simpática senhora mais ou menos desnuda.

 

No entanto, a república, num sentido moderno, tem muito a oferecer, sobretudo se não tivermos medo de a relacionar com a democracia e com o Estado de Direito, com respeito pela diferença entre todos estes conceitos. É na república que encontramos apelo às dimensões que hoje são mais importantes na vida cívica: a participação de todos os cidadãos e o controlo efectivo e concreto das decisões democráticas.

 

Bem sei que é mais fácil ser democrata do que republicano. O democrata devolve o poder aos seus representantes e pode passar o tempo que medeia até às eleições seguintes a criticar tudo e todos, sem grande necessidade de intervenção. Neste sentido a democracia representativa dos tempos modernos, paradoxalmente, convida à construção de um fosso entre cidadãos e políticos. Já a república nunca aceita este fosso. O cidadão republicano é um cidadão activo, ele toma como suas todas as coisas da comunidade e é ele, livremente, que escolhe o modo como intervém na vida à sua volta. Creio que esta é a dimensão que mais está em falta nas comunidades portuguesas.

 

Ser cidadão dá trabalho e a vida não é fácil, bem sei. A tentação para fazer o outsourcing da participação cívico-política, trazida pela democracia moderna, é grande. O republicanismo deve ser a resposta para essa tentação. Não é o caminho mais fácil mas ajudaria a tornar a coisa pública verdadeiramente pública e muito menos alienada.

 

No fundo escrevi todo este texto para considerar que ser republicano, hoje que se celebram cem anos sobre a sua implantação em Portugal, está ainda por cumprir. Não basta ter acabado com a monarquia, como uma lição do ensino básico, é preciso que se construam mecanismos de participação, que se aumentem as consultas públicas de todas as políticas, que se criem fóruns públicos, a vários níveis, locais, regionais, nacionais, para avaliação de políticas e decisões administrativas concretas. Mas sobretudo é preciso que se participe, que se participe bem, em vez de se ser participado.

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