tranquilamente
Fevereiro de 2009, Braga. A PSP apreende, por "obscenos e pornográficos", livros com a imagem de um sexo feminino na capa. O facto faz parangonas; não há bicho-careta que não entoe loas à liberdade de expressão - então, como até recentemente, promovida a desígnio nacional (Madeira excluída, claro). É que a capa dos livros é A Origem do Mundo, óleo de 1866 do francês Courbet cuja primeira exibição pública só ocorreu em 1988, tal o seu potencial escandaloso. É pois de "uma obra de arte" que se trata; como podiam os polícias confundi-la com pornografia? Isso mesmo diz o juiz que avalia o caso. Já o editor e escritor Francisco José Viegas opina: "uma patrulha não tem de perceber de arte, e diante daquela exibição das coxas abertas e do sexo de uma mulher, os agentes viram pornografia pura e trataram de defender a moral pública (...) Parece que isso está nas suas atribuições, se bem que os bracarenses saibam distinguir uma página da Gina de uma pintura de Courbet, o amigo de Proudhon e de Baudelaire. A arte tem destas coisas(...) Há gente que vê sexo em tudo. Em cada moralista há um tarado profissional."
Não, não é inédito no Portugal democrático. Em 2005, no Museu Grão Vasco, uma exposição com imagens de nus e alusões à homofobia foi alvo de uma intervenção "suavizadora" da direcção do museu, que foi acusada de censura. E há o caso Saramago: em 1992, Sousa Lara, secretário de Estado da Cultura, vetou a participação do Evangelho segundo Jesus Cristo num prémio literário europeu, por "atacar princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses".
Com Vale, a censura advém de uma empresa privada. Um privado pode decerto decidir o que expõe, mas, e descontando a hilariante invocação de "valores tradicionais" da seguradora (além do de fazer dinheiro, quais?), será sempre intolerável que a administração de um espaço expositivo diga a um artista convidado o que deve e não deve fazer. Há, porém, quem ache que tudo depende. Caso de Viegas, que em secretário de Estado da Cultura diz desconhecer "pormenores" e não comenta: "É um contrato entre um artista e um mecenas." Pelos vistos, o moralismo só é uma tara na PSP; na Tranquilidade é tranquilo até "não perceber de arte". Porque o sexo em vez de ser de mulher é de homem?, porque o artista, em vez de francês morto, é português vivo?, ou porque. Ah, a arte. Tem destas coisas.
adenda: a tranquilidade fez ontem um comunicado sobre o assunto.