o desencanto da meia praia
Vi, há minutos, o "Perdidos e Achados" na SIC, da autoria da jornalista Conceição Ribeiro. Fiquei impressionado e emocionado. Não conheço a realidade do bairro 25 de Abril, mais conhecido pela designação consagrada de "índios da Meia Praia", à conta do filme de Cunha Teles e da música do Zeca. Mas não pude ficar indiferente a vários níveis de desencanto: o primeiro, a forma como foi possível a um grupo de gente, que vivia em barracas de colmo, deitar mãos à obra e criar coletivamente um projeto que lhe conferia dignidade, qualidade de vida e bem estar, e como essa utopia está hoje condenada pelos interesses imobiliários e pela pressão urbanística (quem souber quanto valem hoje aqueles terrenos, que o diga); o segundo, como o episódio é apenas uma gota de água de um oceano de exemplos de determinação, vontade e esperança populares, de gente que trabalha, que fala claro, que não usa gravata nem silogismos redondos e que se não deixou (ou deixa) vencer pelo estigma, pela pobreza ou por um determinismo social (infelizmente em pleno renascimento), e como o tempo, o cansaço, o envelhecimento ou a conivência oficial acaba por esfumá-los; o terceiro, a perceção de que o bairro é, de facto, uma relíquia de um passado em rápida extinção. Não que esse passado fosse glorioso: quem ouviu um dos rapazinhos de 1976, agora adulto, contar como era ele que ia, com 11 anos, tratar das redes com a irmã quando o pai bebia demais, perde rapidamente as ilusões românticas sobre o que era a vida de pescador pobre de Lagos. Mas o mesmo diz que os filhos não lhe seguirão as pisadas; não querem, e ainda menos ele próprio. Diz que ir ao mar custa 50 euros diários e há muitos dias, semanas inteiras, onde não rende, sequer, isso.
Daqui a uma geração, os índios da meia praia já não existirão, nos terrenos onde um dia, no rescaldo das esperanças de uma revolução, o povo construiu as suas próprias casas, estará o prolongamento do campo de golfe ou um qualquer resort. E os netos dos índios trabalharão lá a troco de ordenado mínimo - se tal coisa ainda existir - , e servirão cocktails aos americanos e alemães e usarão uniformes de caixa dos supermercado onde estes colonos da meia idade se virão abastecer de peixe importado, pescado mesmo ali ao lado por barcos espanhóis. E a segunda geração de Belmiros e de Soares dos Santos encherá os bolsos, dirá que dá "emprego" e fará grandes campanhas e descontos, e os netos dos índios agradecerão as benesses. E alguém chamará a isso "desenvolvimento".