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Reflexão com pouco mais de um dia de atraso

Sempre tive dificuldade em "fazer uma leitura" (como se diz agora) e tomar uma posição nos casos de conflito laboral. É-me sempre penoso tentar separar, do lado governamental, a intenção de ordenar, de corrigir abusos, de agir com justiça social, das preocupações economicistas de poupar no orçamento ou qualquer outra. Nunca consigo distinguir bem, do outro lado da barricada, as aspirações profissionais, a dignificação do trabalho, o justo salário, do espírito corporativo, preguiça laboral e reacção à inovação e à mudança. No caso presente da contestação dos professores, esse desconforto acentou-se, porque tenho grande respeito por ambos os lados, ou seja, a ministra parece-me séria, competente e bem-intencionada e, quanto à classe docente, não é irrelevante que uma greve atinja os níveis de adesão verificados na passada quarta-feira. Para além de que os professores são um retrato do país, há bons, maus, óptimos e péssimos. Eu, como se costuma dizer, levei com todos eles.

Sempre achei que neste processo falta sobretudo bom-senso. Do lado do ministério, não compreendo como é que se chegou a este ponto. Se havia erros, lacunas, complicações desnecessárias, má concepção e má organização interna do famigerado "processo de avaliação", porque é que não foram detectadas mais cedo? Parece que se fazem as coisas em beta-version para experimentar, usando os professores como cobaias, e depois corrige-se quando há problemas e, sobretudo, se há contestação. Afinal o processo vai ser simplificado. Isso quer dizer que, de início, era complicado, que o ministério é incapaz de elaborar um processo simples, claro, previamente discutido e melhorado. Mas a firmeza da ministra, alvo de todas as farpas e de todos os insultos, em recusar-se a suspender o processo, é de louvar. Não andamos a brincar às avaliações, não andamos a brincar à educação. Está na hora de este país deixar as meias-reformas, os processos inacabados. E se só falta um ano para as eleições, maior é a admiração que deve suscitar.

O prestígio da classe docente está destroçado. Dói-me, e digo-o sem reservas e sem ironia, quando oiço (e já ouvi por diversas vezes) uma professora com muitos anos de serviço anunciar a sua reforma por estar farta, desorientada e cansada, por se achar desrespeitada e a perder demasiado tempo com burocracias e papéis em vez de ensinar os alunos. E imagino o aperto que é para um jovem professor andar com a casa às costas anos a fio, umas horas aqui, outras ali, projectos de vida adiados, mais um ano, pode ser que para o próximo consiga, um ano a ensinar, outro desempregado. Tenho filhos em escola pública, com professores bons e menos bons. Sinceramente não acho que a qualidade de ensino seja inferior à que eu recebi. A exigência é menor, as matérias são dadas de forma por vezes atabalhoada. Mas os professores não são piores, longe disso. Lembro-me muitas vezes do que era a escola pública nos finais da década de 70 e na década de 80. Há hoje um empenho, uma responsabilidade e uma responsabilização da escola, dos professores, do Director de Turma que não existiam, nem por sombras, no meu tempo.

Porém, a classe docente perdeu e perde pontos. Os maiores inimigos dos professores parecem ser eles próprios, porque se desrespeitam a si mesmos e não se fazem respeitar. Os professores, como os médicos, como os magistrados, como as forças policiais e militares, são cidadãos especiais, com responsabilidades especiais. Querem respeito, mereçam-no. A torrente de insultos, de calúnias, de piadas de mau-gosto, de insinuações, acerca da ministra da educação, libertada pelo fel de muitos professores nas últimas semanas, na blogosfera como noutros palcos, é um boomerang que mais cedo ou mais tarde se volta contra os professores. Há uma dignidade na função docente que está a ser desbaratada. Ou melhor, que se degrada há decadas e que tarda em ser reabilitada e reconstruída. Ontem recebi mais um sinal disto, uma rasteira baixa.

Confesso que anteontem à noite, salvo erro, fiquei animado com as notícias do desanuviamento. Aparentemente a ministra tinha deixado a pose Margaret Thatcher e manifestara abertura para negociar e acabar com tudo isto. Os sindicatos, ainda  exultantes com o sucesso da greve, podiam agora permitir-se alguma magnanimidade típica de quem está em vantagem, cedendo sem perder a face ou sem se sentir acossado. Era preciso gerir o dia seguinte, estava na altura de guardar o palmarés e voltar ao trabalho. Porém, ontem de manhã, ouvi da rádio as declarações de Mário Nogueira. Foi um balde de água fria. Após semanas a falar do processo de avaliação, das mazelas do processo de avaliação, dos erros do processo de avaliação, da necessidade de corrigir o processo de avaliação, a ministra cedeu e concordou em revê-lo. Greve, vitória. Nova ronda de negociações. Mas Mário Nogueira, ontem, não falou do processo de avaliação. Em vez disso, adiantou que a reunião sem condições marcada para o próximo dia 15 terá necessariamente que discutir o... Estatuto da Carreira Docente. Pasmei. À noite ouvi novo endurecer de posições. Afinal parece que o desanuviamento durou 24 horas apenas.

Em vez de surfar na onda favorável, exultar as vitórias e as provas de unidade e preparar-se para os desafios (muitos) que aí vêm, a plataforma sindical parece apostada em usar tudo isto como arma de arremesso. O Natal está aí. Largos sectores da classe profissional vão desmobilizar, a opinião pública, perdido o estado de graça, vai virar-se contra estes avatares. Os professores, uma vez mais, vão ficar a perder.

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