ter e não ter cão
li há dias o recém lançado livro de manuela gonzaga sobre maria adelaide coelho da cunha, herdeira do fundador do dn. o livro, uma biografia, recomenda-se. maria adelaide (cuja história já foi origem de um filme de monique rutler e de um livro de agustina, 'doidos e amantes') foi internada num manicómio pelo marido e esteve lá por duas vezes (fugiu e foi apanhada). o que diz sobre essa experiência -- e que muito fala do estatuto da mulher no início do século xx, em consonância com a história contada por clint eastwood em the changelling (com a diferença de que maria adelaide era uma mulher rica e bem relacionada, ao contrário da telefonista do filme, e mesmo isso não a salvou de ser declarada louca por encomenda) -- serve de revelador para muitas situações.
diz maria adelaide que, num manicómio, tudo o que uma internada faz é levado à conta de sinal de loucura: se está calada é porque é louca, se fala é porque é louca, se chora é porque é louca, se não chora é porque é louca, se dorme é porque é louca, se tem insónias é porque é louca, e por aí fora. nada serve para provar o contrário da loucura, porque a loucura, como é sabido, não é um estado que o próprio possa negar, tem de ser avaliado exteriormente e por especialistas. há uma presunção de loucura -- ou culpa, se se quiser --que nada vindo do presumido louco pode contrariar, pelo contrário: qualquer declaração de sanidade só adensa a certeza.
algo de novo nisto? não, nada. é bom lembrar coisas que já sabíamos: que todos os nossos gestos, que tudo o que somos exteriormente em palavras e actos pode ser assim sujeito a um escrutínio direccionado que não só ignora tudo o que possa servir-lhe de refutação como encara cada um dos nossos actos, qualquer que seja, como uma prova da conclusão de que parte. de alguma forma, o caso de maria adelaide sublinha apenas, em caricatura, os mecanismos da percepção que temos dos outros e a forma como resistimos a reavaliar alguém depois de lhe termos passado a sentença.