desconcertos
Não de Jaime Nogueira Pinto, que hoje escreve a propósito da morte de Alpoim Calvão. Meus, certamente. Com c e com s. Sobre a nossa história recente. Tal como o autor, também eu vibrei, na minha adolescência, com aventuras de dogs of war (como esta ou esta), mas pouco com "romantismos imperiais", talvez por ter vivido a sua (deles) ressaca, talvez por já estarem fora de moda. Lamento. Porque é de "romantismos imperiais" que fala, ao mencionar a "Guerra e o Império", o "português do Império", o homem que queria "salvar o que podia ser salvo do Império e do país". Um herói romântico, um herói imperial. Não um homem de ação de um regime decrépito e obscurantista. E colonialista. Tudo bem. Nada contra, a nostalgia não tem cura e cada um dá polimento aos metais que quer. Os meus desconcertos (ainda não decidi se com c se com s) não provêm exatamente daqui. Emergem de outros lados. Coisas que eu não sabia. A primeira é que Alpoim Calvão conhecia as "capacidades" e as "folhas de serviços" dos seus camaradas que fizeram o 25 de Abril, "e por isso tinha-os na devida (não muito elevada) consideração". Para um "homem de guerra" como ele, isso significa, deduzo, que Salgueiro Maia e os seus pares não eram grande espingarda. "Foi por isso que conspirou e participou no 11 de Março", diz JNP. Seria bom que esclarecesse o "isso". Poderão as má-línguas deste país de invejosos dizer, alegar, suspeitar que "foi [também] por isso" (não serem militares a sério, como ele próprio?) que Alpoim Calvão foi à sede da PIDE-DGS na manhã de 25 de Abril, ato que, intencional ou não, levou os agentes a resistir e a não se render? Porque lá fora só estava tropa fandanga de camuflado que certamente iria debandar a meio da manhã, logo que os homens de fibra (como o próprio e, presumo, os agentes da António Maria Cardoso) fizessem buuu!?
O segundo desconserto (com c ou com s?) é que Jaime Nogueira Pinto, que até escreve livros de História, afirma que o 11 de Março foi "afinal, uma maquinação e provocação esquerdista, para antecipar e sabotar a reacção conservadora nas Forças Armadas". Deixa lá ver. A "esquerda" maquinou e provocou? como? com os folhetos da "matança da Páscoa"? com o ataque dos paraquedistas ao Ral 1? Não entendo. Para mim, foi apenas excesso de confiança, bravata e vaidade, a juntar a um paupérrima planificação estratégica, de Spínola e dos seus indefectíveis. Alpoim Calvão, por exemplo. Até posso opinar que foram eles os responsáveis, em boa parte, pela rápida escorregadela de Portugal para o PREC, precisamente porque agitaram o fantasma do "golpe fascista" e da "reação" e precipitaram tudo. Nacionalizações, ocupações, o que a gente sabe. Mas isso é outra história.
O terceiro desconcerto diz respeito à atividade conspirativa de Calvão. Grupos que agitavam o papão comunista, que incitavam o medo nas pessoas contra os "russos" que vinham aí, que punham bombas e matavam gente, pensava eu. Nogueira Pinto esclarece que não. Afinal, foram apenas "movimentos" que "tiveram um papel importante na articulação da resistência popular que, respondendo à violência com a violência, equilibrou o balanço de forças em Portugal e permitiu o 25 de Novembro". Eu tinha a ideia contrária, que estes grupos dificultaram, precisamente, o 25 de Novembro, porque acirraram ódios e terrores e tornaram mais difíceis as soluções de compromisso, de razoabilidade e de bom senso. Não comento o "responder à violência com a violência" do MDLP e de outras formações, porque é sempre inútil ajuizar sobre quem iniciou o quê. Para além de que não sei o que me repugna mais, se o "terror de esquerda", se o "terror de direita".
Há outros. Mas talvez o maior esteja nas linhas finais do artigo de JNP, quando fala de África e da forma como Alpoim Calvão e outros lá regressaram: "os que gostávamos de África, não éramos necessariamente colonialistas opressores: gostávamos daquelas pessoas e daquelas terras. E continuámos ou voltámos a gostar quando de «nossas» passaram a ser «deles»". Gostar de África, que era "nossa" e passou a "deles". Aqui, confesso, trata-se de ambos: um desconcerto e um desconserto, não meus, mas de Jaime Nogueira Pinto e de tanta gente, que não consegue libertar-se de equívocos profundos e de incompreensões irremissíveis da História.