W. Clode, médico contemporâneo de Gentil Martins, publicou na Revista da Ordem dos Médicos (ROM) um artigo onde comparou a homossexualidade ao daltonismo. Reagi assim, na ROM, pedindo responsabilidades à publicação médica - não se tratava de um órgão de comunicação social generalista, Clode não estava a dar uma entrevista de vida, no IPO, Clode não era um decano da medicina nacional. Mais, Clode não era reincidente.
Quanto a Gentil Martins, aqui decidi não tomar conhecimento e aqui optei pela ridicularização. Desta vez, porque achei que os dislates clínicos e deontológicos já ultrapassavam o razoável, pelo conjunto de razões que já aqui referi e porque me pareceu que a convicção de impunidade era absoluta e insustentável, mal li a sua entrevista ao Expresso da semana passada pedi a atenção da OM e em especial do bastonário ("linquei" Miguel Guimarães num post que coloquei num grupo fechado a médicos, no FB). Nada que a OM não tivesse feito recentemente com outros clínicos – aqui e aqui, por exemplo.
Algumas observações avulsas sobre o seu comentário:
(1) "A homossexualidade saiu da lista de doenças por mera votação entre especialistas. Não houve qualquer descoberta através de uma análise ou uma qualquer demonstração cabal."
Uma votação entre especialistas não é feita num vácuo. Sendo especialistas, é de esperar que uma sua parte significativa esteja a par dos estudos feitos sobre o assunto. A votação a que aludiu foi feita em 1973; os especialistas da American Psychiatric Association tinham pelo menos vinte anos de estudos em que se basear para formar uma posição cientificamente informada, levados a cabo por Kinsey, Hooker, Armon, entre outros.
Ao fazer referência ao processo que levou à remoção da homossexualidade do DSM como uma "mera votação entre especialistas", está a menorizar injustificadamente o valor das posições científicas desses especialistas. Para além disso, apesar de o processo ter culminado com uma votação, esta foi precedida de uma revisão da literatura pertinente. Pode ler mais sobre o assunto nas primeiras secções do segundo capítulo deste documento: https://www.apa.org/pi/lgbt/resources/therapeutic-response.pdf
(2) "O que sei - isso é certo - é que a criação de dogmas na ciência é a antítese da própria ciência."
Concordo em absoluto. Neste caso, não se trata de um dogma. Trata-se do entendimento científico sobre esta matéria, que pode ser considerado bastante consensual. Há um ponto a partir do qual as teorias científicas se consolidam suficientemente para que deixe de fazer sentido tentar substituí-las por outras que as contradigam de forma fundamental. Por exemplo, a teoria da evolução por selecção natural não é um dogma (o método científico não permitiria considerá-la como tal), mas é suficientemente sólida para que a possamos tratar como um facto assente, para todos os propósitos práticos. A matéria em discussão é mais escorregadia que a teoria da evolução, em certo sentido, mas é suficientemente consensual para que a discussão sobre ela tenha de se basear no entendimento científico que temos actualmente.
(3) "Querer estabelecer um dogma nesta matéria, proibindo quem discordar e tiver uma opinião diferente, é a maior demonstração da fragilidade da tese de que não se trata de uma doença. Mais: é a demonstração clara de que há uma agenda ideológica por trás do assunto."
Imagine a seguinte situação: um médico dá uma entrevista na qual refere que as terapêuticas convencionais de tratamento do cancro são um embuste. Esta afirmação não só é cientificamente errada como é perigosa; pode pôr em risco a saúde de quem a leia e seja por ela influenciado, tomando-a como uma verdade médica e científica.
A situação que ocorreu com o Dr. Gentil Martins não é assim tão distinta. Afirmar que a homossexualidade é um distúrbio de personalidade, ou uma doença psicológica é uma afirmação cientificamente errada e potencialmente perigosa para a saúde mental de quem a leia, pelas mesmas razões que apontei no exemplo que dei acima.
O Dr. Gentil Martins tem uma responsabilidade moral e deontológica (tal como previsto no código deontológico da Ordem dos Médicos) de guiar as suas afirmações pela evidência científica disponível. É o Dr. Gentil Martins que, nesta situação, interpreta a evidência científica como lhe convém, dobrando-a e distorcendo-a de modo a que esta caiba dentro da sua concepção enviesada desta questão.
Não se trata, como o Pinto quer fazer parecer, de um ataque à liberdade de expressão ou a qualquer outra liberdade. Trata-se de dar a uma opinião o valor que ela tem em termos científicos (pouco ou nenhum) e agir em conformidade perante afirmações que estão em oposição à ciência, à ética e à deontologia. Isto é uma discussão científica, é a nível científico que deve ser feita.