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"Legitimidade política" e "regular funcionamento das instituições democráticas"

São dois conceitos que não têm uma relação necessária, mas uma vez que ando com pouco tempo para escrever posts, este serve para, num 2 em 1, tratar os dois pontos que mais me têm impressionado desde 4 de outubro.

 

Quanto à legitimidade temos ouvido de tudo. O ruído é tanto que é complicado conseguir uma análise tranquila. Aqui arrisco conseguir desagradar a gregos e a troianos: todos os intervenientes no processo político-constitucional desde 4 de outubro, foram constitucionalmente irrepreensíveis. Ora, num sistema político de tipo constitucional, erigindo uma república em Estado de Direito democrático falar de uma qualquer legitimidade que não surja do cumprimento da legalidade é um perigo. 

 

Não sei se está fora de moda citar Weber e os seus três tipos de governo legítimo, afinal 1922 já foi há uns tempos, mas creio que ele apanhou a coisa na altura. A coisa é a fonte de legitimidade governativa. O que ouvimos a muitos nas últimas semanas foi uma inusitada defesa da separação, quase estanque, entre uma legalidade, formal e fria (infelizmente muitas vezes defendida por juristas que assim dão mau nome ao Direito), e uma legitimidade quente, aconchegante, tradicional. Realmente, é difícil não lembrar Weber e a sua "legitimidade tradicional", quando este a explicava como o sustento de sistemas de governo que era assim porque sempre tinha sido assim, e ao mesmo tempo ouvíamos, em 2015, políticos, comentadores, académicos, defender que um governo minoritário sustentado pela coligação mais votada mas sem apoio parlamentar era o único governo legítimo e, como tal, não tendo apoio parlamentar teria que haver eleições. Foi isso, aliás, afirmam alguns, que aconteceu com o X Governo Constitucional em 1987, depois de uma moção de censura aprovada. Ou seja, qualquer governo com apoio parlamentar que não resulte do partido ou da coligação pré-eleitoral mais votada será ilegítimo por violação da tradição. Outros, justiça seja feita, não falam em tradição, já de si difícil de demonstrar, mas de imprevisibilidade, de imponderabilidade. Admitindo que não estamos a discutir semântica, o que se ouviu dizer a alguns foi que os eleitores não podiam contar - num mundo da realidade por oposição a um mundo jurídico, pergunta-se - com um governo resultante de uma coligação pós-eleitoral de partidos menos votados em termos relativos, mas com maioria absoluta no Parlamento. Mesmo que isso seja perfeitamente possível de acordo com a Constituição. De Estado de Direito. Democrática. Aprovada pelos legítimos representantes do povo. Revista pelos legítimos representantes do povo.

 

Este é o fulcro da questão. Este atestado de menoridade passado às pessoas. Este argumento aparentemente sustentado na conhecida e crónica iliteracia cívica dos portugueses, oriundos de um país em que um deputado se opos ao ensino da Constituição nas escolas porque isso podia confundi-las e, quiçá, pervertê-las. Todo este descrédito no que permite, impõe ou proíbe a Constituição, toda esta argumentação de que para lá de uma legalidade formal, que ninguém contesta que é bonita e que lá deve estar no seu lugar, mas que o que conta é uma legitimidade real, que só os que a vêem sabem que existe, esbarra num problema que pode melhor ser descrito através de uma metáfora muito simples: as pessoas aceitaram jogar este jogo. E eu prefiro sempre legitimidades que tratem as pessoas adultas como pessoas adultas. E, já agora, informadas, críticas e racionais. Não por acaso, a legitimidade legal de Weber, chama-se na verdade, legitimidade legal-racional.

 

A conversa da legalidade impoluta mas da ilegitimidade evidente faz-me pensar naqueles casos em que o jogador que vai avançado no desenrolar de um jogo de tabuleiro, vai para umas 2 horas, é confrontado com uma regra que o aborrece e que até então nunca tinha sido aplicada, embora estivesse claramente expressa no manual. O jogador vocifera "não estava a contar com esta regra!" "Ninguém a aplica", Não me lembrava dela", "Ninguém acredita nesta regra". Ao que os restantes jogadores replicam: "tivesses lido o manual". Pois bem, a Constituição aí está. Tem sido o nosso manual nos últimos quase 40 anos e não nos temos dado mal. A legitimidade de todos os nossos governos nasce justamente de termos tido deputados constituintes que planearam um sistema político que comporta diversidade. Mais: que promove a diversidade e o pluralismo, que permite várias soluções. São as regras do jogo. Aliás, com vários árbitros, eleitos pelos próprios jogadores. 

 

Moral da história: se o sistema constitucional permite um governo, seja ele qual for, ele é legítimo. O nosso sistema vai mais longe: permitindo vários governos e deixando a escolha para uma combinação de intervenção do tempo, do Presidente da República e do Parlamento. Mais pluralismo e democracia legitimadoras de um Governo era difícil.

 

Estando em funções um Governo (legítimo) e não podendo haver dissolução da Assembleia da República, fala-se, na sequência do discurso da tomada de posse do XXI Governo Constitucional (Cavaco Silva being Cavaco Silva), da possibilidade de demissão do Governo. É curioso notar que desde 1982, a vez em que um Presidente esteve mais perto de demitir um Governo foi em 2004 com Jorge Sampaio. Algumas das suas intervenções a seguir à demissão do ministro que despoletaria a crise política desse ano, pareciam indicar, até pelo modo como esse Governo tinha chegado ao poder (sem eleições), que Sampaio demitiria o Governo. Contudo, não o fez. Preferiu dissolver o Parlamento. O próprio Presidente Sampaio, que não é conhecido por ser um formalista, veio dizer há alguns dias que não demitiu o Governo e preferiu a dissolução por razões puramente constitucionais: a dissolução é livre, a demissão tem que fundamentar-se no perigo para o "regular funcionamento das instituições democráticas". Este conceito não é de interpretação política livre, embora a falta de sanção por uma abusiva utilização da prerrogativa de demissão permita aos mais cínicos dizerem que cabe lá tudo, a começar pelo controlo político encapotado. Na verdade, o regular funcionamento das instituições é um juízo objetivo a partir das obrigações que o Governo tem para com as demais instituições democráticas com que constitucionalmente se relaciona (com a exceção da AR), além das próprias relações internas de um Governo. Isto é, o Presidente da República deve olhar, a partir da Constituição, para o catálogo de relações que um Governo num dado momento pode estabelecer e, caso entenda que estas estão a ser colocadas em causa de forma irregular, deve demitir o Governo. Isto não é um juízo político. 

Um exemplo. Imagine-se que um governo recém-eleito é contrário a uma política pública assumida em nome do Estado português por um govenro anterior. A violação, sem mais, injustificada, e sobretudo reiterada, dos compromissos assumidos permitiria ao PR demitir o Governo. Contudo, se esse mesmo governo revertesse essa política pública nos termos constitucionalmente admitidos, caso o conseguisse, o PR demitindo o Governo estaria a censurá-la politicamente, o que não é o que a Constituição quer e permite.

 

Eis pois como devemos avaliar o Presidente Cavaco Silva no remanescente do seu mandato. Não tanto por ele, que não procura a reeleição e está no fim da sua carreira política, mas como forma cívica e responsável de termos muito claro para nós qual o perfil presidencial que queremos, o que devemos exigir, e como devemos julgar quem queira ir para Belém ou quem, já lá estando, queira renovar o seu mandato. Mas também como forma de avaliarmos todos aqueles que apoiem politica e juridicamente outra atuação de um Presidente que não seja a de utilizar a sua prerrogativa de demitir o Governo no estrito quadro de um controlo institucional e não político. 

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