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O Holocausto (ou Shoah) – um crime singular comparável

Todos os anos se comemora, em 27 de Janeiro, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, lembrando a libertação de Auschwitz pelas tropas soviéticas, que perfaz hoje 69 anos. Cada ano, a memória desse tão terrível evento - o chamado Holocausto ou Shoah, que designa o extermínio de cerca de seis milhões de judeus, remete-nos em parte para o presente. Neste ano de 2014, não deixo de pensar em dois temas, os acontecimentos na Ucrânia a nível europeu e internacional, e a questão das praxes, em Portugal. Estão evidentemente longe de serem comparáveis ao Holocausto, mas este contém, na sua singularidade e unicidade, aspectos que nos remetem para outros no presente, entre os quais esses.

Relativamente à singularidade do Holocausto, este foi percepcionado pela filósofa Hannah Arendt como tendo inaugurado o «reino do massacre de massa» e constituído algo sem precedentes, porque os nazis se arrogaram o «direito de decidir quem deve ou não deve habitar este planeta». Ao definir o totalitarismo nazi como um sistema em que os seres humanos «estão a mais», Arendt acrescentou que querer tornar os homens supérfluos, como o fizeram os nazis, não significa unicamente matá-los, mesmo em massacres colectivos, nem tratá-los como animais, mas, sim, procurar eliminar neles todo o traço de humanidade, até mesmo na própria morte. Ao retomar o pensamento de Arendt, o historiador Saul Friedländer comentou: «Há aí algo que nenhum outro regime, seja qual for a sua criminalidade, tinha tentado fazer. (…) quando um regime decide, na base dos seus próprios critérios que determinados grupos não têm o direito de viver na terra, bem como escolhe o local e prazo do seu extermínio, então atinge-se o patamar extremo. Este foi atingido pelos nazis»

No campo histórico, como alerta o historiador Enzo Traverso, não se trata nem de «reivindicar a singularidade de Auschwitz, o que é absurdo, nem negá-la (o que é duvidoso), mas reconhecer e definir o terrível evento». Efectivamente, alertando para os perigos do conceito de «singularidade» ou «unicidade» do Holocausto, muitos autores avisam que, ao reclamar de que se trataria um evento completamente único incompreensível, se estaria a fazer dele um mistério que residiria fora da História, algo de inerentemente místico e intangível, não passível de ser comparado com outros eventos terríveis, cada um deles específicos na sua singularidade. Outra preocupação de muitos é que, ao reclamar a singularidade do Holocausto, se estaria a privilegiar o sofrimento de determinadas vítimas relativamente a todos as outras.

No entanto, hoje, a questão da singularidade de Auschwitz e da Shoah é compartilhada pela maioria dos historiadores , através de diversos argumentos:  o genocídio judeu é o único, na História, a ter sido perpetrado com o objectivo de remodelagem biológica da humanidade, o único completamente desprovido de uma natureza instrumental, o único no qual o extermínio das vítimas não foi um meio, mas um fim em si mesmo. Essa definição da singularidade de Auschwitz é frequentemente argumentada através de comparações tipológicas com outros massacres e genocídios do século XX. Mas como observou o historiador Ian Kershaw, se os crimes do estalinismo e do nazismo são certamente comparáveis, não são assimiláveis.

Enzo Traverso, por seu turno, afirma que Auschwitz não é um evento historicamente incomparável e que comparar, distinguir e ordenar não quer dizer hierarquizar. Na historiografia, de um modo geral considera-se singular o Holocausto, não porque se recuse qualquer forma de comparação, mas precisamente porque se usa tal comparação com outras calamidades para melhor o distinguir. Yehuda Bauer costumava descrever a unicidade do Holocausto, mas nos últimos anos adaptou esse paradigma para referir o carácter sem precedência do Holocausto, tal como Arendt já o tinha feito. Esta noção remete para o facto de que os judeus não possuem nenhum monopólio da perseguição, mesmo se se traduziu na morte de seis milhões de judeus. O Holocausto literalmente consumiu também a vida de centenas de milhares de ciganos Roma, deficientes, milhões de polacos e russos. Outros, incluindo homossexuais, testemunhas de Jeová, comunistas e socialistas também foram alvos da repressão e mortos devido à sua ideologia, política ou comportamento. Assim definida, a singularidade de Auschwitz não exclui outras barbáries, e o conceito torna-se um «instrumento para elaborar uma hermenêutica da barbárie do século XX», como disse Enzo Traverso.

 

Segundo ele, Auschwitz procede à fusão do antisemitismo e do racismo, com a prisão, a empresa capitalista e a administração burocrático-racional. Nesse sentido, o genocídio judeu é um paradigma da barbárie moderna.Mais ainda que um evento sem precedentes, Auschwitz constitui uma síntese única de diferentes elementos que se encontra noutros crimes ou genocídios, uma síntese possibilitada pela sua ancoragem no sistema social, técnico, industrial, ou seja na racionalidade instrumental do mundo moderno. Considerar Auschwitz como um paradigma da barbárie do século XX significa fazer dele uma via de acesso para as suas diferentes manifestações, e não o objecto de uma focalização exclusiva.

A singularidade de Auschwitz não funda qualquer escala da violência e do mal. Não há genocídio pior ou menor que um outro e a qualidade de Auschwitz não confere às suas vítimas nenhum privilégio. Mas, no outro polo da focalização exclusiva, há a relativização apologética, dos que contestam a singularidade de Auschwitz com o objective de normalizar e até reabilitar o passado alemão, ao relegitimar uma tradição ideológica e política que prepara o terreno à chegada de Hitler ao poder. É uma tendência perniciosa cujo epígono é Ernst Nolte A melhor forma de preservar a memória de um genocídio não é a que consiste em negar os outros, ou a erigi-lo em culto religioso. Mas reconhecer a singularidade histórica de Auschwitz tem sentido pois ajuda a fundar uma dialéctica entre a memória do passado e a crítica do presente, com o objectivo de iluminar todos os fios que ligam o nosso mundo àquele, muito recente, onde nasceu o crime.

Norman Geras, teórico político recentemente falecido (18/10/ 2013), também abordou a questão da «unicidade» do Holocausto, ao colocar a necessidade do enfoque sobre os actos dos «perpetradores» e não sobre o sofrimento das vítimas. A consciência que se desenvolveu na Europa ocupada pelos nazis de que o que estes levaram a cabo foi algo historicamente novo e excepcional não se baseou em qualquer medição histórica do grau de sofrimento das vítimas relativamente a outro grupo de vítimas. Foi sim um julgamento sobre a natureza do crime, exercido contra a própria humanidade. O Holocausto foi certamente um crime contra os judeus, mas a sua singularidade e unicidade não provêm da escolha das vítimas, relaciona-se com algumas qualidades inerentes às ofensas dos «perpetradores».

Essa unicidade, para Geras, teria três características, todas elas actuando em conjunto para criar um crime singular: 1) a industrialização e burocratização da morte, utilizando todos os recursos do Estado moderno; 2) a compreensão de um intento cujo objectivo era varrer da face da terra toda uma determinada população, por nenhuma razão prática;(3) e uma vontade em destruir a humanidade das vítimas antes de as assassinar, humilhando-as e desumanizando-as. A estes três elementos, haveria a acrescentar muitos outros, entre os quais a enorme cooperação e cumplicidade internacionais nos crimes. Cooperação encontrada em quase todo o lado, que faz aliás do Holocausto um crime, não só que envolveu a Alemanha, mas também, entre outros países da Europa, A Roménia, Croácia, Eslováquia, França de Vichy, ou a Ucrânia.

Eu colocaria ainda outra questão, além da que se prende com as etapas que levaram ao Holocausto, a partir de Junho de 1941, a de que houve um enorme grupo de cúmplices e carrascos ou perpetradores (perpetrators) e um ainda maior de pessoas que souberam do que se passava, mas porém nada fizeram – os espectadores (bystanders). Como disse Ian Kershaw, «the road to Auschwitz was built by hate, but paved with indifference» («o caminho para o Holocausto foi construído pelo ódio, mas pavimentado pela indiferença»». Deixarei a questão da passividade e indiferença, para abordar a dos carrascos, nos quais se transformaram muitos seres humanos “vulgares”, que nada fazia prever, socorrendo-me do livro seminal de Christopher R. Browning, não por acaso intitulado Ordinary Men.

Neste estudo sobre um batalhão da polícia de reserva alemã, constituída por “alemães vulgares”, ou “banais”, responsáveis por massacres de judeus na Polónia seguindo a Wehrmacht, assassinando mulheres, crianças e velhos, Browning chamou a atenção para a existência de formas multifacetadas de comportamento. Verificou que nem todos os elementos do Batalhão eram anti-semitas, mas, sim, técnicos amorais, cujas iniciativas «a partir de baixo» tornaram desnecessárias a explicitação precisa das ordens «de cima». Concluiu que, no batalhão da polícia de reserva estudado, enquanto uma minoria significativa dos seus elementos se habituou ao massacre e até sentiu prazer nele, um segundo grupo, também minoritário (cerca de 10%) recusou participar nas chacinas, mas sem conceber a sua recusa em termos políticos ou morais nem criticar os seus companheiros de unidade.

Um terceiro grupo, esse maioritário, conformou-se com as pulsões exterminadoras sem as pôr em causa e participou nelas, achando ser mais fácil disparar sobre mulheres e crianças que de passar por cobardes aos olhos dos que constituíam o seu quadro de socialização identitária. Além de um retrato multifacetado, Browning oferece uma explicação multicausal de motivação, revelando que uma combinação de factores situacionais e ideológicos, a desumanização das vítimas, a especialização profissional e a forma tecnológica como cada um exerceu a sua parte no crime baniram do seio dos «perpetradores» todas as considerações humanas, contribuindo para transformar «homens vulgares» em «executantes voluntários».

Bibliografia

Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo, Lisboa, Dom Quixote, 2006

Browning, Christopher R., Ordinary Men, Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland, Londres, Penguin, 1998 (2.ª ed.)

Friedländer, Saul, Nazi Germany and the Jews, 1933-1945, Londres, Phoenix, 2009; Nazi Germany and the Jews, 1939-1945, Harper Collins, 2007

Geras, Norman «The memory of the offence, normblog, http://normblog.typepad.com/normblog/2005/09/the_memory_of_t.html

Jankélévitch, L´imprescriptible. Pardonner? Dans l´horreur el la dignité, Paris, Seuil, 1986,

Traverso, Enzo, «La singularité d'Auschwitz. Hypothèses, problèmes et dérives de la recherche historique», in "Pour une critique de la barbarie moderne. Ecrits sur l'histoire des Juifs et de l'antisémitisme", Paris, Éditions Page deux,  1997, http://www.anti-rev.org/textes/Traverso97b8/

 

 

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