post amargo
Hoje vi as primeiras imagens verdadeiramente chocantes do conflito Gaza-Israel. Talvez não fossem as primeiras imagens chocantes, mas foram certamente as que mais me chocaram. Não continham sangue nem ruído, nem feridos nem mortos. Ninguém precisou de avisar que "as imagens seguintes podem ferir as suscetibilidade de algumas pessoas", como costumam dizer os pivots para garantir que as pessoas olham mesmo e não mudam de canal. Não. Nem crianças, nem feridos, nem hospitais. Nada disso. Isso são banalidades deste conflito e de tantos outros, que nos entram pela casa adentro e que não merecem mais do que um breve olhar. Por vezes, até se desvia, ou muda-se o canal, porque as pessoas cansam-se de tanta guerra e de tanta imagem chocante. Tanta, tanta, e tão longe, que nem se percebe bem se se está a ver o noticiário das 8 ou o canal Hollywood. Não faz muita diferença, bem vistas as coisas. Eu quero lá saber que se matem uns aos outros, coitados, países atrasados, culpa sabe-se lá de quem, este mundo está perdido, que tristeza.
Não. As imagens que vi hoje e que me hão-de atormentar durante um tempo mais longo do que as imagens chocantes o costumam fazer eram aparentemente inócuas. Tivesse eu o som cortado e nem repararia exatamente do que estavam a falar, e nem estaria aqui a escrever estes desabafos. Mas não estava. Estava, até, bem alto. Não pude, portanto, deixar de ouvir, e a combinação do que vi com o que ouvi deixou-me estarrecido. Era uma peça da Márcia Rodrigues, algures numa cidade israelita, a descrever a maior das normalidades, pessoas na rua, esplanadas, sol, gente a passar, até um músico de rua, pessoas a assistir e a sorrir. Podiam ter sido recolhidas em Lisboa ou em qualquer cidade mediterrânica. Exceto, talvez, no que as pessoas diziam para a câmara: que a guerra devia continuar, que sim, até erradicar o Hamas, que não queriam que o ataque cessasse. Um até afirmou que "para já, não". Eu vi e não queria acreditar. Para já, não. Mais uns milhares de mortos, no mínimo. Como era possível que, a poucas dezenas de quilómetros, estivesse a ocorrer uma carnificina a gente que também tem o direito de andar pela rua, de sorrir, de ouvir o músico de rua, de sentar-se numa esplanada. E que aqueles, os que passeiam ao sol e prosseguem as suas vidas, condenam aqueles outros, os bombardeados, os encurralados sem fuga possível, os que morrem sem saber o que fizeram para o merecer, sacrificam-nos assim, entre a indiferença e o incómodo, como se fossem insetos que lhes estragam o quotidiano, que maçada. Não percebem que a sua indiferença faz crescer o ódio, e que a cada suspiro de enfado seu há um esgar de raiva irredutível, irremediável, a nascer do outro lado, que perdurará por gerações. Sinceramente não sei o que é pior. Mas uma coisa, sei. Que a indiferença é um passo adiante na escala da desumanidade completa.