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jugular

valete e a 'pide feminista': uma fábula sobre a liberdade de expressão

reflecti bastante antes de escrever isto. cheguei à conclusão de que é um imperativo ético e até um dever cívico fazê-lo.

no sábado 21 de setembro, às 00.37, recebi uma mensagem do rapper valete, a quem entrevistara para o dn na terça-feira (publicando artigo na quarta) sobre a sua música mais recente.

nessa mensagem, valete aconselhava-me a 'conter-me' no twitter onde, acusava, eu estava 'numa intifada anti-valete'. e terminava dizendo: 'garanto-te que não queres comprar esta guerra.'

respondi-lhe dizendo que nada do que escrevera no twitter era novo em relação ao que lhe dissera pessoalmente: durante a conversa que tivemos dei-lhe a minha opinião sobre a música e o vídeo, tal como depois da publicação ele me disse que não tinha gostado do artigo. toda a conversa até essa mensagem na madrugada de sábado tinha sido cordata, entre duas pessoas com opiniões diferentes mas que falam civilizadamente uma com a outra – o normal, portanto. tinha-lhe até falado de um filme de kurosawa, rashômon, em que um homicídio é narrado das perspectivas de todos os intervenientes e testemunhas, porque me pareceu que algo do tipo podia ser uma saída para o sarilho em que ele se tinha metido.

porém no sábado tudo mudou. depois de lhe responder à primeira mensagem da forma descrita, valete retorquiu: 'estás avisada, fernanda, não te vou avisar segunda vez.' e como lhe tivesse respondido ser melhor não me avisar, e que os únicos avisos do género que recebera na vida vieram de pessoas com as quais supunha que ele não se quereria misturar, deixou ainda mais claro o seu intuito: 'se vacilares vou-te provar bem rápido que não ameaço em vão. assunto encerrado.'

não voltei a falar com valete, que ainda me enviou, na manhã de sábado, um link de um post no facebook em que alguém que se identifica como mulher acusava as mulheres como eu, que consideram que a música e o vídeo de valete reiteram estereótipos de género e o discurso da misoginia (que aliás se encontra noutras criações dele, como não te adaptes) e banalizam a violência sobre as mulheres, de serem 'pesudofeministas'. e fiquei a pensar no que deveria fazer.

entretanto a discussão pública continuou. mamadou ba, um dos líderes do sos racismo, publicou um texto a condenar a música e o vídeo de valete e também as suas justificações: 'para se defender, valete diz inacreditavelmente: "decretaram agora que não se pode fazer filmes com violência e que não se pode fazer arte sem mensagem. como fiz em toda a minha vida contei uma boa história, consegui levar para um registo cinematográfico e chegámos a este resultado. é uma boa história e bom cinema. nada mais.”

"fazer arte sem mensagem" sobre a violência doméstica é, sim, inaceitável. não se trata de decreto nenhum, nem de juízo de uma minoria que não percebe do processo criativo do rap. é uma posição de princípio que vincula a criação artística à responsabilidade cidadã e ao compromisso político. e, parafraseando aimé césaire, respondo-lhe que o que se espera de um artista rapper é que a sua boca seja a boca dos infortúnios que não têm boca, a sua voz, a liberdade daqueles que estão afundados na masmorra do desespero.”'

nos comentários ao post de mamadou, outras pessoas, uma delas ligada ao meio musical negro -- varela kay, membro da máfia sulleana, o mais antigo colectivo de rap em portugal -- corroboram a opinião de mamadou: 'a "liberdade de expressão" não pode continuar a ser a justificação para tudo o que é injustificável e a "liberdade artística" pode ser um perigoso cavalo de tróia. o storytelling é prática recorrente no rap, estilo musical que tem como fundamento meter o dedo em feridas sociais/existenciais/universais, mas este videoclip é uma irresponsável exteriorização de traumas masculinos e, independentemente da intenção, o efeito é perigoso e quase que uma legitimação do direito à "honra patriarcal". (...) enquanto músico e autor, muitas vezes também me apetece fazer/escrever o que me vai na real gana, mas não o faço, porque as minhas "liberdades" podem influenciar negativamente quem me segue, consequentemente, influenciar negativamente a sociedade em que estou inserido. é essa a responsabilidade que advém de uma posição (mais ou menos relevante) no meio artístico, e numa cultura urbana como o hip-hop a responsabilidade é acrescida, pois o rap, além de ser na sua génese uma arma de consciencialização e reeducação, é o estilo musical mais influente dos séc. xx e xxi e cada vez mais é consumido por adolescentes e pré-adolescentes pouco dados à inteligência (cada vez mais) e perigosamente influenciáveis. assim sendo, o rigor da interpretação não pode ser tão violentamente deixado ao acaso. não sei se há alguma "mensagem" ou objectivo subentendido na música, mas num país com um dos índices mais elevados de mortalidade em violência doméstica da europa, uma música destas não pode vir para a rua sem referenciar inequivocamente a intenção, caso contrário, é só um veículo para a normalização de um problema (e a antecâmara para futuros crimes).'

a partir daqui tornar-se-ia mais difícil manter o discurso, lançado por valete e assumido por muita gente, de que as críticas que lhe fazem se devem a “preconceito e desconhecimento em relação ao hip hop” e vêm de “feministas de classe média” – só faltou dizer que são brancas e racistas.

mas o debate foi torpedeado pelas acções de valete.

depois da ameaça que me dirigiu na tentativa de me calar – o valete que reivindica toda a liberdade de expressão na sua obra não consegue lidar com a minha liberdade de expressão se usada para criticar essa obra -- tive notícia de outra, que está a ser partilhada no instagram, fb e twitter.

nessa outra, dirigida a um homem, alguém que aparentemente é valete, através da sua conta de instagram, ameaça e especifica o que a ameaça implica: 'tás avisado. vou-te dar 2 cabeçadas pa aprenderes a não ser espertinho. que a minha mãe morra se eu não te deixar ensanguentado.' foi também enviada uma mensagem, da mesma conta, para a mulher do homem ameaçado: 'só para avisar que o teu marido foi desrespeitoso em relação a mim. ainda esta semana vou ter com ele e vou-lhe dar nos cornos. só para ele aprender que isto não é merda de putos a brincar aos telemóveis.' o recipiente da ameaça, com quem falei, disse-me que está a ponderar apresentar queixa. e viu-se obrigado a mudar o nome da sua conta no instagram, cadeá-la e distorcer a foto que o identificava.

o autor de uma música e de um vídeo que apresentam a violência homicida como reacção a 'desrespeito' e 'desonra' e que nega que eles possam ser interpretados como apologia ou banalização dessa violência, reputando de 'patética' e 'rebuscada' tal interpretação, demonstra afinal que a sua reacção ao que considera um 'desrespeito' ou simples contrariedade é precisamente a violência (talvez aqui seja preciso explicar que a ameaça é em si violência e é como tal que configura crime no código penal).

se a ideia de valete ao ameaçar-me é deixar-me 'toda ensanguentada', se tem outro plano ou está simplesmente a tentar atemorizar-me e não tenciona ir mais longe, não sei. não sei como integrar esta atitude na pessoa com quem estive horas a falar de forma cordata e com quem até tinha simpatizado.

mas sei que não posso admitir que alguém com esta dimensão pública, alguém que é visto como um role model por muitos jovens e menos jovens, que passa por um 'rapper consciente' e com 'preocupações sociais' e até por um 'intelectual', ache que pode tentar reduzir pessoas ao silêncio com ameaças de mafioso enquanto faz de conta que é um grande defensor da liberdade de expressão e que os 'censores', ou 'pides' -- usou a expressão 'pide feminista' -- são os que se atrevem a criticá-lo. 

não o denunciar seria tornar-me cúmplice desta fraude.

é certo que valete não é o primeiro a ter esta ideia equivocada e perigosa da liberdade de expressão, que passa por se arrogar poder dizer e fazer tudo mas negar aos outros a liberdade de crítica, taxando-a de censura. mas é com ele que a falácia da liberdade de expressão melhor se desmascara: é a falácia do opressor, que se arroga o direito a tudo, até à violência, para fazer imperar o seu discurso. 

se calhar é de lhe agradecer ter tornado isto tão claro.

onde se volta ao empolgante assunto miguel abrantes e se analisa um artigo miserável do observador

escrevi neste blogue, em 2008 e 2010, dois posts sobre a existência real -- pessoal, de pessoa existente, de carne e osso -- do blogger do câmara corporativa miguel abrantes.

fi-lo por à época se dizer que se tratava de um assessor do governo, ou de um grupo de pessoas que se agregariam sob aquele pseudónimo.

acresce que, na mesma altura, o jugular era, assim como o aspirina b, sistematicamente associado ao câmara corporativa como fazendo parte de uma 'frente' de defesa do governo, sendo insinuado ou até afirmado que os três blogues seriam 'pagos' de alguma forma para esse efeito. sabendo eu, como co-fundadora do jugular, que decerto não recebiamos nada de ninguém para blogar, e portanto sabendo essas acusações falsas, não via qualquer razão para que as dirigidas a outras pessoas pelas mesmas fontes -- friso, pelas mesmas fontes, nas quais avultava pacheco pereira -- não fossem igualmente caluniosas. refutei, pois, as acusações com a indignação de quem se sente ofendido e considera que outros o estão a ser de igual modo.

acresce que achava risível -- ainda acho -- a ideia de alguém pagar a bloggers para escrever 'contra' ou 'a favor'. era mesmo algo que nem me passava pela cabeça, mais que não fosse que pela diminuta influência e audiência dos blogues.

 

quando saiu a primeira notícia sobre alegados pagamentos efectuados por carlos santos silva ao blogger que assinava miguel abrantes, antecipei que os posts referidos seriam utilizados, como tantas outras coisas têm sido, para me 'gastarem' o nome, na tentativa de me envolverem nos meandros do processo marquês e fazer passar a ideia de que eu 'saberia' e 'estava por dentro' e 'participei na marosca'. não me enganei, evidentemente. 

decidi não reagir -- à primeira, à segunda, à quinta, à décima.

não tenho tempo nem paciência para reagir a tudo e muito francamente acho que ninguém com um módico de honestidade e boa fé lê os dois referidos posts e vê lá algo que contradiga aquilo que entretanto foi tornado público: que miguel abrantes é o pseudónimo de uma pessoa real, chamada antónio peixoto, e que antónio peixoto não era assessor do governo.

isto dito, e ao fim de meses de imputações e insinuações, o limite da minha paciência foi atingido com um artigo ontem publicado no observador com grande destaque (talvez por o jornal não encontrar, nesta altura da vida do país e do mundo, nada de mais importante para destacar).

sem trazer rigorosamente nada de novo face ao já foi publicado anteriormente, o artigo menciona-me logo no início, lincando um dos dois posts que aqui escrevi (em 2008) sobre miguel abrantes. é curioso que tendo dois à escolha e contendo o segundo, de 2010, muito mais informação, inclusive sobre as circunstâncias em que conheci miguel abrantes e jantei com ele (mencionando também outras pessoas que com ele conviveram na mesma altura), os autores da notícia tenham escolhido o primeiro. foi azar de certeza.

como foi de certeza azar que resulte da notícia a ideia de que eu -- apresentada como 'então namorada de sócrates' (então quando? no dia em que escrevi o post? têm a certeza? a ligeireza e gratuitidade com que pessoas com carteira de jornalista se aventuram nos terrenos deontologicamente e constitucionalmente minados da invasão da esfera íntíma nunca deixa de me espantar) -- menti no que escrevi sobre abrantes.

e por que digo que isso resulta da notícia?

leiamo-la:

'Durante muito tempo, especulou-se sobre a identidade de “Miguel Abrantes”. Os adversários diziam que era, na verdade, um assessor do Governo de José Sócrates. Outros sugeriam que não era um, mas vários autores com informações diretamente sopradas da presidência do Conselho de Ministros e de outros gabinetes ministeriais estratégicos (há quem conheça o processo por dentro e continue a afirmar que era demasiado trabalho para um homem só). Seja como for, as acusações coincidam num ponto: o autor — ou autores — do blogue tinha uma relação com o poder socialista e estava ligados a gabinetes governamentais.

Houve, no entanto, quem garantisse o contrário: Fernanda Câncio, jornalista e então namorada de José Sócrates, foi uma das primeiras pessoas a assegurar que “Miguel Abrantes” existia (e até já tinha jantado com ele, como revelou então). Eduardo Pitta, blogger, poeta e escritor, apoiante do ex-primeiro-ministro, garantiu o mesmo.'

ajudem-me aqui: eu garanti o contrário de quê? é que no post lincado (e no não lincado) me limito a dizer duas coisas:

1. miguel abrantes não era um assessor do governo de sócrates;

2. não era várias pessoas, mas uma;

tudo o resto que está no parágrafo, incluindo o seu final -- 'Seja como for, as acusações coincidam num ponto: o autor — ou autores — do blogue tinha uma relação com o poder socialista e estava ligados a gabinetes governamentais.' -- não é sequer por mim abordado nos posts. 

mas olhemos bem para a forma como a notícia é escrita: eu fui 'uma das primeiras pessoas a assegurar que miguel abrantes existia'. sim, e então? não existia? não existe? não é a pessoa que se assinava miguel abrantes que está na berlinda por ter alegadamente recebido dinheiro para escrever no cc?

a explicação desta fórmula vem no parágrafo seguinte:

'Hoje sabe-se que “Miguel Abrantes” era, na verdade, António Costa Peixoto. Como explicou o Observador, o Ministério Público suspeita que Carlos Santos Silva terá ordenado, em nome de José Sócrates, o pagamento de avenças a António Costa Peixoto (que o Observador não conseguiu contactar) e ao seu filho António Mega Peixoto. Entre 2012 e 2014, os dois terão recebido cerca de 76 mil euros da empresa RMF Consulting — Gestão e Consultadoria Estratégia, uma sociedade gerida por Rui Mão de Ferro, um economista que era colaborador de Carlos Santos Silva e igualmente arguido na Operação Marquês.'

portanto os autores da notícia do observador fizeram -- ou querem induzir -- o seguinte raciocínio: 'ela disse que existia o miguel abrantes mas ele afinal chama-se, no bi, antónio peixoto. ela não disse a verdade.'

isto dá um bocadinho de vontade de rir mesma a uma pessoa tão cansada de ser acusada de idiotices como eu (ou será que me dá para rir por isso mesmo?)

portanto conhece-se alguém que usa um pseudónimo, que entende usar um pseudónimo por razões que são as suas (e que no meu entender nem sequer têm de ser explicadas), que é conhecido publicamente por esse pseudónimo e referimo-nos a ele como? pelo nome 'verdadeiro'? 

 

mas admitamos que os autores ficaram genuinamente com esta dúvida: se o tipo era peixoto porque é que ela disse que o abrantes existia? admitamos, que temos de admitir tudo. fácil: os jornalistas, pelo menos os que fazem jus ao nome, quando têm dúvidas tentam esclarecê-las. agarram numas coisas com teclados que permitem a comunicação à distância e contactam quem pode esclarecer -- no caso, eu. diria até que no caso, dado o tipo de suspeita que claramente aventam, a de que eu teria mentido, tinham a estrita obrigação de o fazer.

mas não recebi nenhum telefonema, sms, whatsapp, mail ou pombo correio do observador. nada. e não é como se não tivessem lá o meu número. 

se os autores -- eram dois e tudo, podia ficar um a fazer coisas importantes e o outro perder cinco minutos a ligar-me -- não acharam que merecesse a pena contactar-me para tirarem dúvidas, se calhar é porque não têm nenhuma.

e se não têm é porque acham que menti -- porque é isso que resulta do que escreveram.

e se acham que menti é porque, e desculpem o meu francês, ou são burros ou são burros -- não excluindo, naturalmente, o serem muito mal intencionados. no que estão muito acompanhados, como comecei por dizer no início deste post.

 

vamos então explicar isto de forma a que até burros possam compreender.

hoje sabe-se que miguel abrantes era o pseudónimo de antónio peixoto. eu não sabia? sabia. desde que o conheço que sei o nome 'verdadeiro' de miguel abrantes. disse-mo quando se apresentou num dos dois prós & contras do aborto (estive nos dois, não me recordo se ele esteve lá no primeiro ou no segundo), no início de 2007. disse-me assim: 'olá, sou o miguel abrantes. mas o meu nome não é mesmo miguel abrantes.'

aliás, na altura, miguel abrantes apresentou-se a várias pessoas da 'delegação do sim' (que incluia, além de mim, vasco rato, pedro marques lopes, daniel oliveira e mais uma série de pessoas, algumas que viriam a fazer parte do jugular, como a palmira silva, etc). abrantes que, recordo, fazia parte do blogue sim no referendo, tinha ido ao p&c na companhia de um dos oradores principais, hoje, curiosamente, comentador da cmtv: rui pereira, que aliás já assumiu, nesse mesmo canal, e de forma algo atabalhoada, conhecê-lo (o observador, pouco observador, não reparou nisso; o cm e a cmtv nunca entenderam, sabe-se lá porquê, relevar o assunto).   

ora tal como se miguel torga se me tivesse apresentado eu haveria de dizer 'conheci miguel torga', apesar de este ser o pseudónimo de adolfo correia da rocha, no caso de miguel abrantes, que tinha decidido não revelar publicamente o seu nome de registo, só poderia designá-lo publicamente pelo pseudónimo que escolheu. evidente, não? diria mesmo: eticamente evidente.

como aliás deve ser, mesmo para burros, evidente que se eu tivesse algum conhecimento daquilo que agora se alega e achasse que o que tinha escrito me comprometia poderia ter apagado os posts em causa logo no dealbar da operação marquês, em 2014, dois anos antes de as primeiras notícias sobre pagamentos a miguel abrantes terem surgido.

e acrescento: como deve ser evidente, dada a intensidade da perseguição que me tem sido votada pelas publicações do grupo cofina, que se algo houvesse no processo que me comprometesse de facto em relação a esta matéria ou a outra qualquer já estaria cá fora em parangonas. afinal, é preciso não esquecer que a cofina pediu em dezembro de 2015 a minha constituição de arguida com base em coisas como ter passado 12 dias de férias em espanha, ter recebido um computador de presente de aniversário, ter referido um apartamento no largo do caldas numa conversa telefónica e ido visitar uma propriedade no algarve. acham mesmo que se tivessem mais alguma coisinha não teriam usado?

não havendo nada, resta fazer insinuações do tipo das que se encontram no artigo do observador: ela chamou abrantes a um tipo que 'afinal' se chama peixoto, portanto 'mentiu', sabe-se lá o que é que ela fez mais? 

 

...

 

mas a miséria do artigo do observador não se resume à parte em que me refere. é espantoso como um artigo daquela extensão, que começa por falar da suspeita de que o câmara corporativa fosse feito por um colectivo e chega mesmo a dizer 'António Costa Peixoto é, para já, o único identificado, mas os indícios apontam para a existência de outros autores', termina declinando, no último parágrafo (repito: no último parágrafo) os nomes de outros autores do blogue, retirados do blogue. será a isso que os pobres jornalistas do observador chamam 'indícios'? é preciso uma subscrição para oferecer um dicionário ao observador? 

depois, o que é impagável num artigo que começa por dizer que miguel abrantes 'escreveu sob anonimato' (sim, já se percebeu que os autores confundem pseudónimo com anonimato, é o tal problema de falta de dicionário), como sendo algo de reprovável, ouvem um 'blogger anónimo': “Ninguém na blogosfera sabia quem era “Miguel Abrantes”, mas toda a gente sabia que era mais do que uma pessoa. Era uma amálgama de gente, com estilos de escrita diferentes. “Miguel Abrantes” talvez fosse o pseudónimo de quem coordenava toda a informação que chegava ao blogue”, conta ao Observador um ex-blogger, que assumia a defesa de Pedro Passos Coelho e do PSD nos blogues do outro lado da barricada.'

uns parágrafos acima, citam-me a mim e a eduardo pitta, dois bloggers, como tendo afirmado que conheciamos miguel abrantes; agora citam um tipo que não dá o nome (decerto com medo de represálias) que diz que 'ninguém na blogosfera sabia quem era o miguel abrantes'. 

recapitulemos: miguel abrantes entrou, logo em 2007, num blogue colectivo, o sim no referendo; em 2009 fez parte do simplex, o blogue criado para apoiar o ps nas legislativas desse ano. ambos os blogues estavam cheios de gente que pode ser contactada. mas os jornalistas do observador só conseguiram falar com uma pessoa que recusou ser identificada e que dá opiniões tão incontroversas como 'ninguém sabia quem era o miguel abrantes mas toda a gente sabia que era mais que uma pessoa.' que esplêndido trabalho de investigação jornalística. uma pessoa fica mesmo tentada a imaginar que não quiseram identificar o blogger em causa porque, se calhar, é para aí colega do observador ou assim. 

o mesmo blogger anónimo diz 'Muita da informação que era colocada no blogue não era de fontes públicas. E era colocada quase em tempo real. Só podia vir de dentro da Presidência do Conselho de Ministros.' 

isto quer dizer o quê? tipo, exemplos, há? zero, que isso dá trabalho e ainda se corria o risco de não haver nada para mostrar. e o que é 'tempo real'? é o oposto de 'tempo irreal'? 

de seguida, mais um anónimo, desta vez 'um homem do presidente'. o 'anonimato' em abrantes é uma coisa horrível mas só para escrever em blogues. para escrever sobre abrantes só se sacam anónimos super credíveis. 

e mais uma vez, a menção ao 'tempo real': 'Tínhamos mais ou menos uma ideia da identidade dos autores do blogue. Sabíamos que tinha de ser alguém com informações privilegiadas porque escrevia comentários quase em tempo real.'

e mais uma vez zero exemplos, ou explicação do que se quer dizer com o afirmado. estamos no domínio das puras insinuações. um artigo que visa demonstrar o 'modus operandi' de um blogue de propaganda a dedicar-se, do princípio ao fim, e de modo particularmente canhestro, a manobras de pura propaganda: que maravilha. 

 

maravilha pelo menos tão extraordinária como essa é que, numa notícia sobre um blogue, não exista, como valupi já frisou, qualquer reflexão ou elemento sobre a capacidade de influência deste, quer através das visualizações de que seria alvo -- os jornalistas poderiam (deveriam) ter tentado revisitar os rankings de blogues ou falar com especialistas das plataformas que conheciam os números, por exemplo -- quer através do efeito na opinião pública e publicada. nada, zerovzky. 

isto para não falar da inexistência de contexto no artigo: o cc foi o único blogue em relação ao qual foram levantadas suspeitas de 'alimentação' institucional ou partidária? não há até uma tese de mestrado de um autor de um blogue passista, o albergue espanhol, a relatar reuniões com passos e estratégias concertadas de propaganda e contra-propaganda? não houve um blogue, o 31 da armada, que organizou uma operação de interferência na campanha eleitoral do ps em 2011, enviando uma pessoa mascarada para vários comícios, e alegando que o fazia com fundos recolhidos através de donativos para o blogue (blogue esse em que a principal figura, o marketeiro rodrigo moita de deus, ascendeu depois a dirigente do psd)? não houve, depois de anos de acusações de que os blogues apelidados de 'socráticos' seriam constituídos por assessores, uma entrada em massa no governo de passos, como assessores e não só, de bloggers dos blogues que faziam essas acusações? e como é possível citar fernando lima a propósito do câmara corporativa como fazendo psrte da 'invisível máquina de propaganda do governo de sócrates' elidindo o papel de lima como eminência nada parda no obsceno caso das escutas, em que comprovadamente um órgão institucional plantou uma notícia num jornal, em plena campanha eleitoral, contra o partido do governo em funções? é possível tal falta de noção e vergonha? 

escrever com seriedade sobre o fenómeno câmara corporativa e sobre aquilo que seria o 'modus operandi' do seu autor/autores implica, naturalmente, contextualizar. e sobretudo implica que quem o faz procure informar-se com rigor para com rigor informar: isto se é a verdade, ou a possível aproximação à verdade, que se procura, e não mais um fácil libelo acusatório e difamatório à maneira do correio da manhã, construído desde o início com um propósito em tudo avesso à deliberação de informar com lealdade. 

...

tudo isto dito, e para concluir, a ser verdade que antónio peixoto foi pago para escrever no câmara corporativa, o facto choca-me tanto mais quanto, como é claro no que escrevi sobre ele, tal coisa nunca me passou pela cabeça. mas esse é um problema entre mim e antónio peixoto, que a mais ninguém diz respeito. 

 

 

 

 

a demagogia da câncio, parte 2

a lúcia gomes escreveu no manifesto 74 um post muito enervado a propósito desta minha crónica no dn sobre as pensões minimas e a proposta do be (e também do pcp, de que a lúcia é militante) de as aumentar por atacado, acusando-me de 'demagogia' (emulando o título da minha crónica) e de dizer 'tantos, mas tantos disparates que me enchi de vergonha alheia'.

fiquei cheia de interesse no que a lúcia teria a dizer sobre o que escrevi e no que iria ensinar sobre pensões mínimas, já que é um assunto que há muito me interessa e sobre o qual tenho lido e noticiado, além de opinado, com alguma frequência.

fiquei desiludida: afinal, a lúcia não tem nada a dizer sobre as pensões mínimas, nem que eu saiba nem que eu não saiba. e muito menos sobre a possibilidade de imposição de condição de recursos para a parte da pensão que não resulta do cálculo baseado nas prestações contributivas, ou seja, que é prestação não contributiva.

não; a lúcia faz um post a admoestar-me por ignorância ou má fé em que não demonstra nem uma nem outra -- da minha parte, pelo menos. eu, que conheço a lúcia de algumas conversas e entrevistas telefónicas e simpatizo com ela, esperava mais, como espero mais e melhor da mariana mortágua que aquilo que me levou a escrever a crónica citada.

esperava que a lúcia explicitasse porque é que, no seu entender, fui demagógica (quer dizer, simplista, populista, voluntariamente parcial) e/ou ignorante. e já agora que aproveitasse para ler a entrevista ao carlos farinha rodrigues que o dn ontem publicou, mais o texto que a acompanhou, sobre um livro sobre segurança social coordenado por pessoas tão ignaras e de direita como louçã e josé luís albuquerque e, cotejando o que farinha rodrigues diz sobre o mesmo assunto e o que eu disse, encontrasse as diferenças. talvez seja difícil, admito, porque a opinião que tenho sobre as pensões minimas se formou exactamente com base no trabalho e nas opiniões de farinha rodrigues e de outras pessoas conhecedoras que estudaram o assunto. e a sua, lúcia, qual é e baseia-se em que estudos e números? é que, lendo o seu post, fiquei na mesma.

beijos e fico à espera de ser esclarecida.

bom, enough is enough: a maria joão marques, colunista do observador e blogger do insurgente, está a mentir. e é doida varrida

repetindo-me

a pessoa que em 2008 escreveu que um perfil feito por mim do então novo ministro da cultura josé antónio pinto ribeiro, fundado em opiniões - laudatórias, é certo -- de socráticos tão notórios como antónio barreto, francisco teixeira da mota, luisa schmidt e nuno artur silva fora encomendado pelo gabinete do então primeiro ministro;

 

a pessoa que, por mim publicamente avisada sobre a existência de legislação sobre difamação, ameaçou revelar factos da minha intimidade para me demover de uma possível acção;

 

a pessoa que a seguir, ante o público e generalizado repúdio (que incluiu até várias pessoas da sua área política, como antónio nogueira leite) que a sua conduta suscitou, retirou a primeira afirmação e pediu desculpas públicas pela ameaça;

 

a pessoa que tentou assarapantadamente apagar a evidência de tudo isso

 

veio agora insinuar que lhe tentei pôr um processo e depois desisti -- insinuar, porque não se atreve sequer a afirmá-lo, escaldada que está com a possibilidade de ser chamada à responsabilidade pelas afirmações que faz. aliás, nem o meu nome teve coragem de colocar no post onde tal insinua (diz para adivinharem quem foi o autor da queixa) e 'não se lembra' do motivo da dita. 

 

essa pessoa, de nome maria joão marques, colunista do observador e blogger do insurgente, está obviamente nisto como em tudo o resto antes elencado a mentir. custa a perceber porque insiste em fazê-lo quando as provas de que mente estão tão disponíveis, pelo que parece evidente estar-se perante um caso clínico. o que, não diminuindo o nojo, dá uns resquícios de pena. oxalá alguém possa ajudá-la, se não a tornar-se uma pessoa decente, pelo menos a evitar dar espectáculo público e renitente da sua mitomania em último grau e demais deficiências de carácter. 

 

apre.

 

 

 

 

post it higiénico

a criatura colunista do observador citada no post abaixo resolveu hoje, no blogue onde escreve e no meio do habitual chorrilho de elevações, negar um episódio público e publicado, chegando mesmo ao ponto de escrever (perdoem-me não lincar, é que infecta) que na sequência do mesmo teria sido eu a 'sair de fininho.'

percebo -- e antecipava, de resto -- o gesto desesperado. sabendo que há muita gente que se lembra do caso, aposta no desconhecimento dos que nunca dele ouviram falar e tenta limpar-se ante as suas tropas, prontas a acreditar em todas as aleivosidades do 'outro campo' e na pureza sem mácula dos 'seus'. mas sendo certo que escreveu o arrazoado após tentar livrar-se das provas (posts e comentários apagados à stalin, etc -- chato que a web não perdoa e guarda tudo) no seu então blogue, azar,  ficou o seu pedido de desculpas aqui no jugular (que reproduzo abaixo) mais uns 81 comentários a debater o assunto. 

como era já então mais que óbvio, pediu desculpas por aflição, conselho jurídico e medo, não por realmente reconhecer aquilo que lhe é de todo impossível pela absoluta deficiência de carácter. aplaude-se pois que exiba passados oito anos o esplendor de sonsice e cobardia com que então se quis fazer perdoar, mais a desfaçatez na mentira.

 

enfim. nem 20 mil idas a fátima limpam toda esta porcaria.

 

aqui fica, para a posteridade e para quem não tem paciência para abrir links:

Maria Marques 09.02.2008 22:57

 

Cara Fernanda, Hoje a meio da tarde (só escrevo agora por dificuldades operativas) passou-me a irritação de ontem e caí em mim e percebi o feio que foram estas minhas palavras de ameaça de revelar "coisas" sobre a FC. Peço-lhe desculpa e pode acreditar que estou profundamente envergonhada comigo por me ter saltado a tampa desta forma. Nunca fiz alusões à sua vida privada (de coisas soltas que a P. de vez em quando comenta quando falamos de vizinhos) e não o farei agora. Caso haja processo, serão levantadas as questões pertinentes à minha defesa nas instâncias próprias e não no Farmácia ou na comunicação social.

nota: a pessoa que em 2008 escreveu que um perfil feito por mim do então novo ministro da cultura josé antónio pinto ribeiro, fundado em opiniões - laudatórias, é certo -- de socráticos tão notórios como antónio barreto, francisco teixeira da mota, luisa schmidt e nuno artur silva fora encomendado pelo gabinete do então primeiro ministro; a pessoa que, por mim publicameente avisada sobre a existência de legislação sobre difamação, ameaçou revelar factos da minha intimidade para me demover de uma possível acção; a pessoa que a seguir, ante o público e generalizado repúdio que a sua conduta suscitou, retirou a primeira afirmação e pediu desculpas públicas pela ameaça; a pessoa que tentou assarapantadamente apagar a evidência de tudo isso, veio agora insinuar que lhe tentei pôr um processo e depois desisti -- insinuar, porque não se atreve sequer a afirmá-lo, escaldada que está com a possibilidade de ser chamada à responsabilidade pelas afirmações que faz.

creio ser evidente que se está perante um caso clínico, o que, não diminuindo o nojo, dá uns resquícios de pena.  

 

as marias joões marques, o daesh, o padre degolado, a esquerda e a minha culpa

desde que a pessoa que dá pelo nome de maria joão marques ameaçou revelar pormenores da minha vida privada que lhe teriam chegado por uma vizinha minha que decidira, num acto de pura higiene, nunca mais tomar conhecimento da existência da dita, por mais que esta, demonstrando uma renitente fixação em mim, me mencionasse nos seus prolixos escritos, agora difundidos no observador.

mas hoje fizeram-me chegar um seu texto no dito jornal digital em que a criatura escreve isto:

'Já Fernanda Câncio, que funciona como uma espécie de definidora de tendências da esquerda socialista (por quem é absolutamente reverenciada, talvez pela sua destemida defesa das mais absurdas e ruinosas políticas socráticas), reagiu. Dizendo no twitter que uma notícia, dando conta do reconhecimento de que os atacantes de Rouen eram tropa do ISIS, era ‘fazer a propaganda do Daesh’. Como se trata de uma jornalista – pelo que se pode presumir que vê como um bem as populações estarem informadas do que de relevante se passa no país e no mundo – que, tanto quanto sei, não sugeriu a sonegação de informações sobre os atentados de Orlando, Nice, Paris ou Bruxelas, ficamos desconfiados que o desconforto repentino com as notícias da brutalidade do ISIS se deve à qualidade de religioso católico do degolado e não à seita de assassinos islâmicos.'

dou de barato que a capacidade neuronal da autora não lhe permita perceber que o intuito do daesh é apresentar-se como omnipresente e omnipotente inimigo global usando o sistema mediático das sociedades ocidentais e a respectiva histeria noticiosa como veículo de propaganda -- no que está a ser, como terá previsto, incrivelmente bem sucedido. e que a supracitada debilidade aliada à ignorância e sobretudo ao intuito demagógico a impeçam de reflectir sobre a forma como a propagação acéfala do poderio do daesh está a contribuir para esse mesmo poderio e para contaminar cada vez mais gente e alimentar cada vez mais imitações dos actos de terror. e decerto não vou perder tempo com a caracterização que é feita sobre mim. 

mas escrever, num texto intitulado '(des)culpa ateia', 'que, tanto quanto sei, [fernanda câncio] não sugeriu a sonegação de informações sobre os atentados de Orlando, Nice, Paris ou Bruxelas, ficamos desconfiados que o desconforto repentino com as notícias da brutalidade do ISIS se deve à qualidade de religioso católico do degolado e não à seita de assassinos islâmicos' ultrapassa aquilo que estou preparada para aturar em silêncio. esta imputação de que eu estaria 'desconfortável' com o facto de ser noticiado que um padre foi degolado pelo daesh e que seria esse desconforto a levar-me a reflectir sobre o modo como se tem reagido no ocidente aos ataques é tão repelentemente abjecta que não pode passar em claro.

desde logo, o que não surpreende dados os antecedentes da pessoa, maria joão marques mente. basta procurar, e nem sequer muito, no meu twitter -- que é público e portanto de acesso universal -- para encontrar tuites anteriores sobre as minhas reservas à atribuição instantânea de actos de terror ao daesh (o que, obviamente, não é o mesmo que 'sonegar informações'). e não dá trabalho nenhum, é só chegar ao twitter e fazer busca por 'fcancio+daesh'. acresce um pormenor delicioso, que aliás explica que maria joão marques não tenha querido lincar o tuite que refere: trata-se de um retuite meu de uma notícia sobre o discurso de hollande, ou seja, de uma crítica minha, aliás não a primeira, à forma como o presidente francês, que recordo aos distraídos ser do partido socialista, tem mordido o anzol em matéria de ataques de terror.

a maria joão marques, naturalmente, não lhe interessam minimamente  estes 'pormenores', ou o que seja a verdade (aliás, em eco de pilatos, perguntará: 'o que raio é a verdade e de que é que isso me serve?'); só uma coisa a anima neste texto como na generalidade do que escreve: ódio. 

para maria joão marques, como para tanta gente como ela, os actos de terror que se têm sucedido e este acto em particular, por ter um padre como vítima e uma igreja católica como palco, são oportunidades para atacar aquilo a que ela chama 'a esquerda', 'os ateus', 'os jacobinos' e, como se constata, esta vossa criada que tanto lhe inflama as meninges. a ideia é simples e nada original (é ver a linha trump-le pen): usar o daesh e o medo como trampolins para avançar nos seus propósitos políticos, tentando apresentar 'a esquerda' como culpada/cúmplice/comprometida/amedrontada do e com o terrorismo dito islâmico e apontando qualquer apelo à reflexão e à moderação das simplificações como 'pusilânime' e 'tentativa de escamotear a gravidade da ameaça'.

tudo isto seria apenas tristemente cómico não fosse dar-se o caso de estarmos a falar da morte de pessoas, e de uma organização que claramente visa provocar nem mais nem menos que estas reacções; se não fosse este discurso odiento, que encontramos por exemplo, et pour cause, na retórica de um breivik, que melhor se adequa aos propósitos de daeshs e al qaedas. 

em vez de olhar para a morte deste padre como uma evidência, face à identidade de todas as outras vítimas reivindicadas pelo daesh, de que toda a gente -- incluindo muçulmanos, de longe o grupo com maior número de mortos e feridos causados pelos ataques da organização -- é alvo, as marias joões marques gritam estridentes 'olha um padre morto e a esquerda não diz nada.' 

como todos os que dizem e escrevem o que ela diz e escreve, e que saltam a qualquer notícia sobre ataques violentos com o daesh na boca, maria joão marques faz, com indisfarçável orgulho, parte da primeira linha de propaganda do auto-denominado estado islâmico -- os idiotas mais idiotas da utilidade mais tenebrosa. a utilidade que começa por fazer das pessoas 'tipos' e 'categorias', que é o mesmo que fazer delas coisas. que, como no texto de maria joão marques, nega ao homem assassinado até o seu nome, para o reduzir a uma função simbólica, a de servir de munição para atacar 'a esquerda'.

a pessoa que foi assassinada em rouen tem nome: jacques hamel. as notícias e perfis dizem que era um homem de paz, e que se interessava por promover o diálogo - entre religiões, nomeadamente com a islâmica, e entre as pessoas em geral. estou em crer que ficaria muito triste se soubesse que a sua morte é usada em discursos de ódio como o da auto-denominada cristã maria joão marques, instrumento simbólico na sua pena como o foi na faca dos seus matadores. 

mas isto sou eu, ateia de esquerda, a dizer. se calhar sou culpada de ter como único sagrado as pessoas e a vida e de me meter muito asco a instrumentalização do terror e da morte para atacar adversários políticos. 

 

 

 

que se foda: ganhámos

é muito estranho para mim, geralmente tão indiferente ao futebol e tão esforçadamente resistente ao nacionalismo, o que senti ontem quando chorei ao ver ronaldo chorar e quando voltei a chorar com o golo de éder.

 

tento racionalizar isto invocando a arrogância francesa e a necessidade de redenção de um país pequeno e tantas vezes humilhado, das porteiras e dos bidonvilles e dos trolhas contra resgates e schauble e ultimatos, mas sei que é uma coisa tribal, que não há nenhuma fundamentação ética ou filosófica que explique isto, que é mesmo esta coisa da bandeira, da nacionalidade, da tribo, da pátria. que se compraz e comove com uma selecção feita de tantas origens, que não contém as lágrimas ante a alegria de dili, num reencontro celebratório com a ideia nunca verdadeiramente abandonada do mundo portuguez, de uma identidade global espalhada pelos continentes, de uma fraternidade que resistiu às conquistas sangrentas, aos massacres, aos saques, ao esclavagismo, ao racismo, a toda a brutalidade e estupidez e abandono e que se afirma assim, nestas lágrimas, nos cortejos de buzinas e bandeiras (e como é feia a nossa bandeira, céus) do outro lado do mundo. como se a nossa história comum fosse apenas a língua e bons sentimentos, como se fosse apenas amor.

 

odeio isto, este sentimentalismo, esta comoção bacoca. odeio. e no entanto, porra. foi tão bom, sabe tão bem. e são tão lindos, os nossos meninos. que se foda a racionalidade, que se foda o pensamento crítico, que se foda o cepticismo, e o cinismo, e a ironia. ganhámos. e precisávamos tanto.

 

(mas, atenção, marcelo -- que tens tanta sorte, caramba, como todos os malucos -- tens de condecorar também as nossas campeãs do atletismo, e devias fazê-lo ao mesmo tempo e no mesmo momento, que estou bacoca mas não estou louca)

cristiano ronaldo, o micro da cmtv e nós

não me choca nada o que cristiano ronaldo fez. e porquê? explico.

primeiro, ele não agrediu ninguém. agarrou no símbolo daquela organização criminosa e mandou-o ao rio/lago whatever. o tipo da cmtv não fez nada de especialmente agressivo? é verdade. limitou-se a fazer uma pergunta anódina, por aí não haveria motivo para aquela reacção. e até pode ser óptima pessoa e -- porque os há decerto naquele antro -- jornalista, e bom. mas trabalha para aquela empresa energúmena. e o cristiano ronaldo, como qualquer outra pessoa sistematicamente atacada por aquela cloaca, não tem de saber quem é aquele indivíduo. só tem de conhecer o logo no micro.

há outras formas de lidar com os ataques do cm? deve-se recorrer aos tribunais? sim, sim, claro. mas boa sorte com isso. sendo certo que a organização em causa, e muita gente com ela, reputa o recurso aos tribunais de acto de censura, de mordaça, e de pressão -- um acto inadmissível de violência, em suma. e ai do juiz que dê razão a quem recorre aos tribunais, que o cm lhe fará a folha. pelo que, hoje em dia, haver juízes que dêem razão a alguém contra o cm é altamente improvável. e de caminho quem foi enxovalhado gastou dinheiro em advogado e custas e ainda tem de pagar as do cm (se não sabem, ficam a saber).

fazer isto a um 'jornalista' do cm é 'abrir 1 porta', e a seguir pode-se fazer a outros? news flash: muito pior que isto já sucedeu a jornalistas em portugal, nomeadamente na madeira, e nunca vi grande reacção. mas o essencial que há para dizer sobre essa perspectiva nem é isso; é que somos nós, os jornalistas, que temos a responsabilidade por alguém nos confundir com o cm. somos nós, os jornalistas, que com o nosso silêncio e a ausência de exigência de auto-regulação deixámos que isso sucedesse, pelo que se nos começarem a tratar a todos como se fizéssemos parte da mesma escumalha não nos podemos queixar. deixámos o cm ganhar a guerra; somos terreno conquistado por falta de comparência na batalha. culpa nossa, exclusivamente nossa.

tudo isto conduz a uma conclusão: na ausência de demarcação da classe jornalística, na ausência de reacção do estado de direito, o que resta a quem é perseguido, vilipendiado, invadido, difamado? a santidade? a fuga? o suicídio?

eu prefiro a luta. o cristiano ronaldo também. e, atendendo às circunstâncias, acho que o que ele fez não só é plenamente justificado como teve imensa classe. foi um acto de um simbolismo que não tenho pejo em considerar belíssimo. o logo do cm foi para o seu habitat natural: o lodo.

foi assim que a cidade nos deixou, neste caso: sós contra o mal. cada um por si.

o processo marquês e eu (e a visão)

foi quando a cmtv começou a passar os audios de escutas em que fui interveniente que decidi escrever este texto. atingi aí o limite. no fim de março, tinha a primeira versão finalizada. o objectivo era, claro, torná-lo público, e comecei por pensar postá-lo neste blogue e partilhá-lo no fb. amigos sugeriram-me que tentasse publicá-lo num meio em papel. contactei a visão e esta manifestou o seu interesse. impus condições: ou era publicado como estava ou não era de todo. quando escolhi o título -- 'o processo marquês e eu' -- a visão sugeriu que deveria ser 'sócrates, o caso marquês e eu'; respondi que tal estava fora de questão, porque não se trata de um texto sobre sócrates, e muito menos de um texto sobre sócrates e eu. considero por esse motivo um abuso e uma falta de respeito terem colocado esse título na capa: trata-se de uma frase na primeira pessoa, colocada sobre a minha imagem, que leva quem a lê a inferir que é dita por mim.

mas a visão foi ainda mais longe, apresentando o meu texto, em todas as ocasiões em que o descreve, como um desvendar de intimidade. um testemunho 'emotivo', como lhe chama o director da revista num vídeo postado no fb, o qual, assevera a visão on line, 'não é certamente um esclarecimento distante, desinteressado de quem consegue ter uma visão independente e fria sobre o que versa.' mas, afinal, por que raio quiseram publicar este texto 'emotivo' e 'sem distância', sem frieza e portanto sem rigor? a visão explica: 'por ele se percebe como josé sócrates se relacionava com o mundo e com o dinheiro.' ou seja, nada do que eu pretendo denunciar é importante; é sócrates, e o que possa revelar de sócrates, que interessa.

mas quem já leu o texto sabe que a visão enganou deliberadamente os seus leitores: não é pelo meu texto que vão perceber 'como josé sócrates se relacionava com o mundo e com o dinheiro' ou qualquer 'revelação' relativa a outros factos que não os que me tentam imputar. quem já leu sabe que ao contrário de uma narrativa 'emotiva' encontrou um relato factual e consubstanciado. opinativo, decerto; mas com o propósito de relatar e informar, ao contrário do que se passa com a descrição voyeurista, parcial e acintosa que a visão dele escolheu fazer. descrição essa que, faltando em absoluto ao rigor, elide cuidadosamente o propósito essencial do texto: defender-me das calúnias lançadas pelo correio da manhã e restantes publicações da cofina, expondo os métodos desses media e a perversidade do sistema judicial. aliás, a visão não faz uma única referência ao correio da manhã nas peças que fez sobre o texto. 

avisei o director da visão de que ou começavam a fazer jornalismo, ou seja, a informar com rigor sobre o que este versa, ou eu publicá-lo-ia on line. não recebi um cêntimo por ele, não assinei qualquer cedência de direitos autorais, pelo que se mantém integralmente meu. e não só não aconteceu jornalismo na visão como me deparei, hoje, com um spot de rádio que diz 'fernanda câncio coloca tudo a nu.' a visão não se limita a querer vender revistas, todas as que conseguir, à conta de um texto que lhe ofereci; quer vender-me a mim e à minha dignidade neste spot ordinário. mas, ao contrário, é a visão que se põe a nu neste processo. 

disponibilizo pois aqui o meu texto, para que sirva o seu propósito: denunciar, alertar, informar. e para que quem o queira ler e partilhar o possa fazer sem acrescentar lucro a uma publicação que provou ser indigna dele. 

 

Esclarecimento público

 

O processo Marquês e eu

 

Falar? Calar? Qual a melhor forma de lidar com a calúnia? É possível ganhar uma guerra assim, ou travá-la é já perder? Faço-me estas perguntas há um ano e cinco meses. Decido agora falar. Sem esperar milagres, talvez esperando nada. Mas chega.

 

 

  1. É com imensa repugnância e tristeza que me vejo forçada a fazer estes esclarecimentos públicos, já que me obrigam a entrar em domínios que considero serem os da minha vida privada, que sempre preservei e continuo determinada a preservar. Mas, perante a tentativa de destruir a minha reputação pessoal e profissional, devo falar. Aliás estes esclarecimentos coincidem com os prestados ao MP, e opto por ser eu a publicitá-los em vez de esperar que o meu depoimento, como tudo o que está em alegado segredo de justiça, seja truncado e manipulado pelos media que nisso se têm notabilizado.

 

  1. A detenção de José Sócrates e Carlos Santos Silva, em novembro de 2014, foi um enorme choque para mim. Não apenas porque não via motivos para esta ocorrer, mas também porque só soubera da possível existência de uma investigação através da revista Sábado, em agosto de 2014.

 

  1. Foi pela Sábado que soube ser CSS o proprietário de um apartamento em Paris que JS usara. Até então, estava convicta de que tal apartamento, que nunca vi e que pensava ser o segundo no qual JS teria vivido naquela cidade, tinha sido arrendado a proprietários franceses. Manifestei aliás a minha surpresa a JS, num telefonema que está decerto nas escutas.

 

  1. Nunca tive conhecimento nem motivos para suspeitar da existência da relação pecuniária entre CSS e JS que os dois assumiram na sequência da detenção. Refiro-me aos empréstimos de CSS a JS e ao facto, também assumido pelos dois, de que foi CSS que pagou as férias que passou com JS e para as quais, por mais de uma vez, JS me convidou. Nunca vi motivo - e já lá irei - para suspeitar de que quem me convidava não assumia a sua e minha parte da despesa.

 

  1. Nunca solicitei ou recebi de JS - nem de CSS, evidentemente - quaisquer quantias em dinheiro fosse a que título fosse: empréstimo, pagamento de quaisquer serviços por mim prestados ou oferta. É uma calúnia que publicações e o canal do Grupo Cofina, assim como o Sol, refiram ou sugiram sistematicamente que estou incluída num ‘grupo de mulheres’ que seriam 'sustentadas' por JS e CSS.
  2. Da mesma forma, foi uma total surpresa para mim a revelação de que terá sido montada uma ‘operação’ de compra do livro publicado por JS. Não comprei um só exemplar nem assisti a nada que me levasse a suspeitar de algo do género.
  3. Ignorava também que a ex mulher de JS trabalhava para uma das empresas de CSS e comprara um monte no Alentejo com garantia bancária deste.

 

8. Em suma, há uma série de factos que foram revelados e assumidos por JS e CSS depois de novembro de 2014 dos quais eu não fazia a mínima ideia. Nada no processo e em qualquer escuta pode permitir inferir o contrário - porque esta é a verdade. 


9. Ainda assim, estou desde novembro de 2014 e, com mais intensidade, desde outubro de 2015, quando foi decretado o fim do segredo interno no processo, a ser alvo de uma campanha de calúnias que teve o seu apogeu no pedido de dois assistentes, funcionários do CM, para a minha constituição de arguida, pedido esse assumido como seu pelo CM, em notícia de 20 de dezembro de 2015.

 

As acusações do Correio da Manhã

10. E que alega o CM para me constituir arguida? Diz a ‘notícia’: “O pedido foi feito por dois assistentes, jornalistas do Correio da Manhã. Sónia Trigueirão e Sérgio Azenha requereram a constituição de arguidas de ambas, por branqueamento de capitais e fraude fiscal. Porque movimentaram o dinheiro de Sócrates – que formalmente pertencia a Santos Silva, mas que o MP diz ser do ex-primeiro-ministro – usufruíram da fortuna do amigo milionário. (…) Quanto a Fernanda Câncio terá de explicar as férias pagas por Santos Silva e também promessas de compras de imóveis. Câncio e Sócrates chegaram a tentar comprar uma casa no Chiado, que valia três milhões de euros, e visitaram uma quinta em Tavira com o propósito de a adquirirem. As escutas telefónicas mostram ainda que Câncio poderia saber que o dinheiro era de Sócrates.”

 

  1. Solicitei ao MP acesso ao requerimento do CM, de modo a poder defender-me daquilo que o CM tornou uma acusação pública de crime. Foi-me respondido, e apenas em fevereiro de 2016, que existe “ausência de fundamento legal para que seja deferido, uma vez que a requerente não é interveniente nos autos (...), subsistindo vigente o regime do segredo de justiça, na sua vertente externa.”

O país saber do requerimento por via de quem o fez e publicitou não viola o segredo; eu conhecê-lo para me defender já viola. Mas, porque eu, ao contrário do CM, respeito a verdade e, ao contrário do MP, não me refugio em fórmulas sonsas, e porque é óbvio que neste momento quem quiser tem acesso ao processo – está em todas as redacções do país --, assumo que já o li.

 

  1. E que diz o requerimento? Que “dos presentes autos resultam indícios de que tanto Sofia Fava como Fernanda Câncio (...) podem ter participado activamente na ocultação do produto obtido pelo Arguido JS decorrente do crime de Fraude Fiscal.” No que me diz respeito, afirma: “poderá ter beneficiado indirectamente de quantias que resultaram da prática de actos de fraude fiscal por parte de JS”; “em algumas situações, a própria poderá ter utilizado essas quantias, o que indicia que Fernanda Câncio poderá ter praticado atos próprios do Branqueamento de Capitais”; “das escutas realizadas e que constam dos autos, há fortes indícios de que Fernanda Câncio sabia que JS tinha avultadas quantias de dinheiro disponíveis, apesar de ser público que aquele, enquanto ex-PM não teria a capacidade económica e financeira para suportar aquele estilo de vida”; “resulta ainda do conteúdo das escutas recolhidas em sede do presente inquérito que FC tinha um conhecimento profundo dos negócios de JS, bem como dos gastos pessoais desse e que evidenciavam a existência dessas avultadas quantias de dinheiro.”

 

  1. E onde estão os “fortes indícios”, “as fundadas suspeitas em relação a Fernanda Câncio”? Vejamos: “Desde logo, do SMS enviado por FC a JS no dia 22 de Setembro de 2013, onde aquela diz: “mas vais ver q ela volta para ti, não há assim tantos ex pm com massa e casa em paris disponíveis”; “outro indício resulta de uma conversa a 2 de Fevereiro de 2014, mantida entre os dois, onde aquela solicita o pagamento de um computador no valor de 1349 euros, pedindo também os dados do cartão de crédito de JS ao qual este último acede”; “a 24 de Junho de 2014, FC diz a JS que Dina lhe enviou um email com a descrição de uma casa (...) tendo ambos discutido a possibilidade de adquirir uma quinta que Fernanda e Dina julgam ser um bom investimento”; “a 1 de Julho de 2014 FC diz a JS que este perdeu a casa no Algarve, ao que este pergunta se o proprietário não a quer vender a si e a CSS”; “A 22 de Fevereiro de 2014, FC enviou um sms a JS, sugerindo uma visita de ambos a um apartamento duplex localizado próximo do largo do Caldas, imóvel esse que tinha o valor de venda de 2,2 milhões de euros”; “FC só poderia sugerir a aquisição do referido imóvel se tivesse conhecimento directo de que JS dispunha de uma elevada capacidade financeira para o adquirir”; “No mesmo dia, já em conversa telefónica, JS recusa-se a visitar o apartamento argumentando que isso seria ‘o primeiro passo para aparecer no CM’ e pediu para ser FC a visitar o dito apartamento”; “FC não questionou o sentido ou alcance desta afirmação, o que leva a crer que está ao corrente da proveniência (ilícita) dos fundos que iria utilizar para aquisição daquele imóvel”; “JS manifestou a FC o interesse em adquirir um imóvel em Tavira por 900 mil euros”; “Para além disso, resulta dos factos até aqui recolhidos que FC acompanhou JS em várias viagens ao estrangeiro: Veneza em 2008/2009, Menorca no Verão de 2009 e Formentera no Verão de 2014”; “Na viagem a Formentera, foi interceptada uma conversa de FC de onde resulta que esta tratou e programou os detalhes da viagem em conjunto e que essa estadia custou mais de 18 mil euros tendo a factura sido paga por CSS”; “Por fim, numa conversa escutada entre Inês do Rosário (mulher de CSS) e FC aquela insulta JS dizendo que o marido não merece o que lhe está a acontecer e FC concorda. Inês refere que JS iria ser ‘a cruz’ da sua família ‘até ao fim’ ao que FC responde que ‘não precisava de ser tão pesada’”; “Inês do Rosário volta a dizer noutra conversa com FC que tinha avisado o marido, CSS, que era um erro ir de férias com JS, que este ‘deu cabo da vida a todos’”. Para concluir: “Os Assistentes consideram existir fundadas suspeitas da cumplicidade de FC em muitos dos negócios que envolvem o arguido JS”; “Aplicando o Direito aos factos, constatamos que FC e Sofia Fava foram cúmplices do crime de branqueamento praticado por JS.”

 

Uma Justiça cúmplice de crimes

 

  1. Antes de analisar as “fundadas suspeitas” que o CM, em milhares de escutas e de páginas do processo, logrou reunir, interessa revelar e recordar alguns factos.

 a) Logo que o segredo de justiça interno caiu, e tentando evitar que sucedesse o que era óbvio que ia suceder -- divulgação de conversas privadas sem qualquer indício criminal, tentativa crescente de me implicar no processo por “contágio” -- coloquei uma acção de tutela dos direitos da personalidade contra as publicações dos grupos Cofina e Newshold. Na primeira instância, a decisão foi-me adversa; a sentença chega a aventar que eu queria exercer “censura prévia”. Interpus recurso; foi deferido pela Relação, que reenviou a acção para a mesma juíza. Convém no entanto explicitar algo que deveria ser evidente: colocar uma acção no termos em que coloquei significa que estou a alertar a Justiça para o provável cometimento de crimes contra mim; o efeito útil dessa acção só colhe se esses crimes forem cometidos. O que visava evitar era a tentativa de, através de falsidades, imputações caluniosas e publicação de escutas sem relevo criminal, me associar ao processo e criar a imagem pública da minha implicação nele, assim como continuar a devassar a minha intimidade. Se a acção tiver provimento, os meios em causa só serão condenados a indemnizar-me se se provar que atentaram contra os meus direitos. Ora na sua contestação, entregue em 12 de novembro de 2015, o Grupo Cofina e directores do CM e CMTV certificaram não haver intenção de criar suspeitas sobre mim. Cito: “Nenhum dos artigos em causa levanta qualquer suspeita sobre a requerente”; “É falso que os artigos contenham qualquer sugestão de que a requerente beneficiou, conscientemente, de qualquer benefício eventualmente ilícito que José Sócrates tenha obtido”; “Contrariamente ao que a requerente sugere, o facto de esta ter viajado com José Sócrates não fará seguramente dela suspeita nos crimes pelos quais este está a ser investigado”; “A requerente tanto quanto se sabe, não está indiciada pela prática de qualquer crime de corrupção, fraude fiscal ou branqueamento de capitais, nem tal coisa alguma vez foi escrita ou sugerida nos órgãos de comunicação social aqui referidos.” Um mês e três dias depois, o CM apresentou o requerimento em que pede a minha constituição de arguida, provando assim que mentiu na contestação apresentada e que o seu objectivo era, como alego na minha acção, implicar-me no processo e apresentar-me como cúmplice de alegados crimes.

 

b) Imediatamente a seguir à ‘queda’ do segredo de justiça interno, a 21 de outubro de 2015, o CM fez manchete com título “Operação Marquês. Mulher de Santos Silva confessa os esquemas.”

No texto lia-se: “Nas escutas telefónicas do processo Marquês, Inês do Rosário, mulher de CSS, deixou a nu os esquemas de branqueamento de capitais que envolviam o marido e JS. Após os arguidos terem sido detidos, a 21 de Novembro do ano passado, Inês foi apanhada numa conversa com Fernanda Câncio – ex-namorada de Sócrates – na qual revela que os milhões que estavam na conta de Santos Silva eram afinal do antigo primeiro ministro.” Nada no resto do artigo sustenta tal afirmação: nenhum excerto de escutas, nenhuma citação de conversa comigo. É natural: nunca existiu tal conversa.

 

Mas nem mesmo após eu exarar um desmentido sobre a manchete/“notícia” o CM fez qualquer correcção. Pelo contrário: sublinhou que as escutas em causa haviam sido “validadas por um juiz.” As escutas que estão no processo, com certeza; bem ou mal, foram validadas, é evidente. Mas onde estão as que suportam aquilo que o CM afirma?

 

c) Acusada na praça pública com base em elementos de um processo em segredo de justiça mas sem poder usar esses elementos para rebater a acusação, requeri acesso às escutas em que sou interveniente – e apenas a essas. A resposta chegou em fevereiro de 2016: na minha qualidade de “não interveniente nos autos” não tenho acesso legal, sendo o mesmo “apenas admissível após o encerramento do inquérito.

 

d) O MP sabia, à data desta sua resposta, que o CM, na sua categoria de assistente do processo, publicara notícias sobre escutas, reproduzira escutas e até noticiara o seu pedido de que eu fosse constituída arguida. Tudo isso viola o segredo de justiça “na sua vertente externa”; porém o MP nada fez. Mas quando uma interveniente em conversas escutadas requer o acesso às mesmas diz-lhe que não. O segredo de justiça torna-se, assim, uma defesa dos que o violam, e o MP a garantia de que quem é vitimizado pela sua violação não possa defender-se. Não só não impede que se viole a lei como protege quem a viola – e permite a quem o faz um tal sentimento de impunidade que a CMTV já passa áudios das escutas do processo.

 

e) No fim de outubro, após ser ouvida como testemunha, solicitei aos inquiridores, o inspector-geral tributário Paulo Silva e a procuradora Ana Catalão, que me esclarecessem sobre o que tencionavam fazer em relação às repetidas violações do segredo de justiça e às imputações falsas alegadamente baseadas no processo. Perguntei, por exemplo, onde estava no processo a evidência de que, como a CMTV afirmara a 24 de Outubro de 2015, eu “usava também o dinheiro de Santos Silva.” Paulo Silva foi peremptório: “Isso não está no processo”. Porém, ante a minha exigência de que o MP repusesse a verdade, lamentou não poder fazer nada; o problema está na lei que permite a constituição de jornalistas como assistentes, explicou. Aconselhou-me a recorrer aos tribunais.

 

f) Um agente da justiça com um processo à sua guarda admite a sua incapacidade de evitar que assistentes do processo usem o acesso privilegiado para não só violar o segredo de justiça como tentar incriminar pessoas imputando-lhes factos que não estão no dito processo. Mas recusa a possibilidade de ser a Justiça a repor a verdade, dizendo à vítima que a única forma de se defender é processar. Ou seja: a Justiça diz à vítima que não pode evitar um crime do qual é cúmplice pelo menos por inacção (ao não cumprir a obrigação de assegurar o segredo que decreta) e aconselha-a a recorrer à Justiça.

 

As “fundadas suspeitas”

 

  1. E vamos então às “fundadas suspeitas” contra mim que estarão no processo. O tal em que figuram conversas minhas às quais não posso aceder a não ser quando passam na CMTV, truncadas e incluídas no meio de peças e “especiais” em que sou incluída em grupos de pessoas que, acusa-se, faziam pedidos de dinheiro e recebiam dinheiro, compravam livros por atacado, etc., de modo a insinuar que eu faria parte desse grupo – isto quando não se afirma mesmo que eu “usava o dinheiro de Carlos Santos Silva” ou “ajudei a esconder os milhões” (“Ex-mulher, Sofia Fava e ex-namorada Fernanda Câncio ajudam a esconder dinheiro”, titulava a primeira página do CM a 6 de Março, sem que, para variar, nada no texto fundamentasse a afirmação).

 a) A SMS. “Não há assim tantos ex PM com massa e casa em Paris.” Que diz esta SMS? Segundo o CM indicia que eu sabia que JS é ex PM, que tem uma casa de propriedade sua em Paris e que tem (muito) dinheiro. É interessante, por este exemplo, aferir do critério usado para classificar as comunicações escutadas como tendo ou não relevo para o processo. Sucede que o que está na SMS é que JS tinha uma casa em Paris, tanto quanto eu sabia, arrendada. Sabem o MP e o juiz e por conseguinte o CM que nunca houve qualquer conversa sobre esse apartamento em que eu tivesse tomado parte (à excepção da já citada), sabem o MP e o juiz, e por conseguinte o CM, que nunca o vi.

 

b)   A “massa”. Conheço pessoalmente JS desde 1998 e conheci a partir de 2000 a família alargada, verificando que todos viviam com desafogo. Além disso, pelo menos desde que JS ascendeu a secretário-geral do PS, em 2004, saíram regularmente notícias nas quais se falava da fortuna da família, se dizia que a mãe é rica, que o avô era rico, que os tios são ricos, que o próprio possuía um apartamento “de luxo” no centro de Lisboa, que passava férias “de luxo”, que se vestia em boas lojas, etc. Enfim, que tem “massa”. Mas uma SMS minha na qual, com ironia, refiro essa “massa” tem “relevância criminal”. E pode mesmo “provar” que eu “sabia”. Num processo com pelo menos ano e meio de escutas, para “provar” que eu “sabia”, desencantaram isto.

 

c) Vamos então à alegada “intenção de compra” de um apartamento que o requerimento do CM diz ser “junto ao Largo do Caldas” e custar “2,2 milhões” mas que a notícia relativa ao requerimento no CM, e todas as que se lhe seguiram no mesmo meio e na CMTV, situam “no Chiado” custando “três milhões”. Ora nada há nessa escuta – ou em qualquer outra – que comprove a teoria de que eu queria comprar um apartamento, ou outro imóvel qualquer, com JS. Infere-se, pelos vistos, que falar de um apartamento a alguém como sendo interessante implica que o quero comprar com essa pessoa. Mas há mais: infere-se igualmente que se eu punha a hipótese de JS comprar um apartamento de 2,2 milhões tinha de saber “a origem do dinheiro.” Ora, além de crer que JS tinha acesso a dinheiro de família, e de este me ter dito que auferia um alto salário como consultor, ele era proprietário de um apartamento que valia perto de um milhão de euros (de acordo com o noticiado, foi vendido em 2015 por 750 mil euros). E ele informara-me de que a mãe, ao mudar-se, lhe dera o apartamento dela, ou o correspondente em dinheiro. Não era, pois, extraordinário que pudesse pagar o que estava a ser pedido pelo apartamento do Caldas. Acresce um detalhe que tanto MP como CM conhecem mas que o CM nunca revelou (pelo contrário, já que o apartamento “se mudou” para o Chiado): o imóvel fica em frente à minha casa. É por assim ser que eu sabia o preço: liguei a perguntar, por curiosidade, quando o edifício foi reabilitado e os andares ficaram à venda; mas, ao contrário do que se quer fazer crer, nunca sequer o visitei.

Por outro lado se, como o CM afirma, eu queria comprar um apartamento com JS, e se este, na escuta citada, diz não estar interessado no do Caldas, onde estão os outros imóveis que propus para essa compra em conjunto?

 

d) A propriedade de Tavira que visitei com JS, e cujo arrendamento e venda está a cargo de uma amiga minha, agente imobiliária (Dina). Tendo passado lá um fim de semana, ele achou-a interessante e falou dela a CSS. Como havia duas casas, uma grande e uma pequena, foi-me dito que podiam comprar e dividi-la. A casa pequena custava, se bem me lembro, 360 mil euros. Não me pareceu fora do alcance de JS.

 

e) As férias. Quando alguém próximo faz um convite para passar férias não é costume perguntar se é a pessoa que nos convida que paga ou se é outra, como quando nos convidam para jantar ou almoçar não perguntamos de onde vem o dinheiro. Quem aufere uma avença de 25 mil euros/mês (que JS me disse receber) pode decerto pagar a meias um aluguer como o da casa em Formentera, e cujo valor eu conhecia. Não me passou pela cabeça outro raciocínio.

 

f) O computador. JS ofereceu-mo pelo meu aniversário. Encomendei-o no site da Apple, daí a necessidade dos elementos do cartão de crédito. Sublinhe-se: de acordo com a teoria do CM e CMTV, eu saberia “da origem ilícita dos fundos a que JS tinha acesso” e da circulação de dinheiro vivo entre CSS e JS, mas pedi a JS o número do cartão de crédito para fazer uma compra on line e portanto completamente exposta. Faz sentido?

 

g) Quanto a eu não ter questionado que se chegasse ao CM a informação de que JS visitara um apartamento de 2,2 milhões, eles noticiariam o facto: como é que isso pode remotamente indicar que “eu sabia a origem ilícita dos fundos”? Indica apenas que sei qual o “jornalismo” que o CM pratica.

 

 

  1. E que respondeu o MP ao requerimento do CM? O CM não achou que tivesse relevância para ser noticiado com o mesmo relevo do pedido. Mas o MP respondeu ao requerimento e até se dignou, depois de a isso instado, a informar-me da resposta: “Já foi tomada posição nos autos sobre o estatuto aplicável à requerente, que foi ouvida como testemunha, não existindo, por ora e mesmo face ao recolhido após a inquirição, para que tal estatuto como testemunha seja alterado. (...) mantém-se, nos termos supra expostos o estatuto de testemunha com que a requerente foi convocada nos presentes autos.” Falta uma palavra nestas frases, que deverá ser algo como “motivo” ou “razão”. E está uma outra, atrevo-me a dizer, a mais: “mesmo”. “Mesmo face a recolhido após a inquirição”? Eis uma daquelas brincadeiras a que o MP nos habituou, e que consiste em nunca dizer nada que não possa ser interpretado de 10 formas diferentes e que não deixe a pessoa sobre quem incide a declaração na dúvida sobre o que a espera. Não se sonhe que o MP ia dizer preto no branco “não há nada contra esta senhora.” Isso, como o próprio MP já me disse de viva voz, não cabe ao MP. O que cabe ao MP, pelos vistos, é manter a dúvida, de forma a que eu vá sendo queimada em praça pública.

 

Como podia eu “não saber”?

 

  1. Independentemente da campanha de calúnias de que sou alvo, é natural que haja gente bem-intencionada e séria que se questiona sobre como podia eu “não saber”. Aquilo que tem sido publicado e que o próprio JS (assim como CSS) já assumiu faz difícil perceber que alguém tido como próximo não tivesse pelo menos estranhado o que se revelou ser a disponibilidade financeira deste graças ao “dinheiro vivo” proveniente de CSS. Mas, como já disse, não só nunca me foi mostrada essa circulação de dinheiro como durante os períodos em que convivi com JS nunca o vi efectuar compras de valores incompatíveis com aquilo que eu acreditava – já expliquei porquê -- ser a sua capacidade económica. Nunca assisti a gastos que me parecessem ir além das possibilidades de alguém com acesso a um confortável pecúlio familiar e um bom ordenado. Almoçar e jantar em bons restaurantes, vestir-se em boas lojas, sim; mas conheço imensas pessoas que frequentam os mesmos restaurantes e compram nas mesmas lojas. Não sou aliás a única pessoa do círculo de JS a ter ficado surpresa com aquilo que se publica como sendo os seus gastos.

 

  1. Se fizesse ideia da relação pecuniária entre CSS e JS teria feito perguntas por considerar a situação, no mínimo, eticamente reprovável. Mas nunca, desde novembro de 2014, fui questionada, por qualquer dos media que, ao longo de quase ano e meio, me tentaram implicar no caso, sobre o que eu sabia. Nem um pedido de esclarecimento, de entrevista, um questionário. Nada. Como interpretar isto? As regras do jornalismo (se quisermos fingir que achamos que certos órgãos praticam jornalismo) são claras quanto à obrigatoriedade de ouvir as partes interessadas. Isso mesmo frisou o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas face à queixa que lhe apresentei em dezembro (apesar de se referir a isso de passagem, como se não fosse gravíssima falta deontológica que, pela renitência, evidencia dolo e deliberação persecutória). E o próprio Octávio Ribeiro, director do CM e da CMTV, reconheceu numa entrevista recente que “isso [não terem tentado ouvir-me] foi uma grande falta nossa”. Para logo a seguir acrescentar que se quero ser ouvida sei onde são os estúdios da CMTV e a redacção do CM. Declarações que falam por si. E colocam ainda com mais acuidade a questão: porque é que o CM e a CMTV e o Sol nunca me perguntaram nada?

 

  1. Tenho resposta para esta pergunta. CM, CMTV e Sol sabem muito bem o que estão a fazer. Tendo acesso a todo o processo, sabem que eu nada sabia sobre a relação pecuniária entre CSS e JS, e que isso, como tudo o resto que consideram “forte indício”, me foi ocultado. Sabem o CM, CMTV e Sol, sabe qualquer pessoa com acesso ao processo e sabe, desde logo, o MP. Por que motivo, então, estou há um ano e cinco meses a ser acusada e caluniada, numa clara deliberação de destruir a minha honorabilidade pessoal e profissional? Não faço ideia. Recuso-me a acreditar que o móbil destas acções esteja no facto de ser uma crítica do modo de actuação destes media. É demasiado ridículo e ao mesmo tempo assustador que esteja a ser “castigada” pelas minhas opiniões livremente expressas. Mas se não for isso, será o quê? Maldade pura? Teimosia na prossecução de uma estratégia que bem sabem ser estéril mas que, entretanto, faz ruído, dá audiências e me vai provocando mossas de difícil reparação? Convicção de que a Justiça nunca os chamará a reparar os danos que me infligiram e me continuam a infligir?

 

  1. Por fim: disse-me o MP que se quero defender-me ponha processos. Se me quero defender do que me estão a fazer com a cumplicidade da Justiça, recorro à Justiça. Encorajador, não é? À Justiça recorri e recorrerei: é a forma de dirimir conflitos numa sociedade civilizada. Mas não posso dizer que tenha muita esperança no resultado. E sobretudo não posso esperar por uma decisão judicial que levará anos enquanto assisto à destruição da minha reputação graças à perversão da mesma Justiça à qual devo pedir auxílio. Não tenho, e sei que não tenho, forma de me defender de uma máquina judiciária a quem como todos os cidadãos de um Estado de Direito entreguei o poder de violar uma série de direitos fundamentais em nome de um bem maior, crendo que à entrega desse poder só poderiam corresponder uma responsabilidade e uma observância da lei à altura da dimensão dos danos que ele pode infligir. Uma máquina judiciária que permite que o seu poder seja usado por terceiros com intuitos venais e que ao permitir esse uso se contagia dessa venalidade. Não tenho forma de ganhar esta guerra porque o simples facto de a travar significa que já a perdi. Mas não tenho outro remédio senão lutar. Não posso assistir calada e quieta, mesmo se há muito quem me diga para fazer de morta a ver se passa, porque se reagir é pior. Estão enganados, claro. Se não reagir perderei aquilo que tenho de mais precioso: a minha identidade, o respeito por mim. É esse, para mim, o significado de juízo final; é nesse que não posso falhar.

 

 

 

 

 

 

glória, o daesh, mariana e nós

é quase a minha vez na fila do embarque para amesterdão – de onde conto apanhar um comboio para bruxelas, cujo aeroporto está fechado devido aos atentados dessa manhã -- quando o telefone toca. 'alô, é mariana de sousa moreira.' mariana, 48 anos, é a única filha de glória fernandes de oliveira esteves de sousa moreira. glória moreira, em curto: a primeira portuguesa vítima mortal do daesh, assassinada na tunísia em 2015, aos 76 anos.

 

mariana vive no brasil. quando a mãe morreu, não teve forças para falar comigo. foi com o marido e a tia, irmã de glória, que recolhi a informação necessária ao perfil publicado no dn em que descrevia uma pianista intrépida que, três anos após a morte do muito amado marido, decidira ir de férias sozinha para o lugar onde costumava ir com ele. agora, quase um ano depois – os atentados que vitimaram a mãe e 37 outras pessoas, apanhadas na praia por um homem de 23 anos com uma metralhadora, foram a 26 de junho – mariana vinha a portugal e tinha combinado, por mail, encontrar-se comigo. daí a chamada. digo-lhe onde estou e porquê. 'imaginei que pudesse estar de partida.' a coincidência estremece: vou ao encontro de uma cidade atingida pelo terror que lhe matou a mãe num atentado cujo dia e número de mortos provavelmente na europa já ninguém recorda, à parte dos familiares das vítimas e dos turistas que lá estavam. nem os portugueses se lembram da portuguesa que morreu na tunísia. porquê? ainda nessa manhã escrevera no twitter: 'bombas na turquia, nenhuma comoção; bombas em bruxelas e ficamos malucos.' caiu uma chuva de insultos e respostas tortas: 'esperavas o quê? é normal ralarmo-nos mais quando morrem os nossos.'

 

os nossos. os deles. começa e acaba tudo aqui, nesta distinção, nesta fronteira. às vezes, muito raramente, conseguimos fazê-los, aos nossos e aos deles, coincidir. como quando vimos um menino sírio de três anos, jeans e ténis de borco numa praia turca e percebemos que era só um bebé e podia ser nosso – parecia-se mesmo com os nossos, caramba – e chorámos baba e ranho e dissemos 'temos de os salvar todos', até que dois meses depois o daesh matou em paris e pensámos melhor no assunto.

 

mas glória, que era mesmo mesmo nossa, portuguesa do douro, desapareceu porquê do nosso radar? por que raio a esquecemos? é disso que mariana me quer falar: do calvário burocrático que enfrentou sozinha, daquilo que descreve como zero apoio das autoridades portuguesas. 'sinto mais apoio do foreign office britânico que do governo português', diz. 'vai haver no mês que vem uma celebração e o reino unido convidou-me para estar presente. pediram-me desculpa por não me poderem pagar a viagem.'

 

tenho há muito uma teoria sobre a maneira como dividimos (e notem este 'nós'; é mesmo nós) os atentados entre aqueles que achamos que são connosco e os que não são. não tem a ver só com quem morre; tem a ver com o lugar e também com quem mata. em Istambul, a 12 de janeiro, morreram 12 alemães e um peruano; a 19 de março, na mesma cidade, morreram dois israelitas e dois americanos. ninguém em portugal se preocupou muito com isso. ninguém foi ‘enviado especial’ a istambul. o mesmo para os atentados no egipto, em bali, em mumbai, na tunísia e até na rússia (ah, a rússia; é europa mas não é bem, não é?). morreram europeus mas em lugares que, mesmo em alguns casos fazendo parte da europa, colocamos fora do nosso território sagrado.

 

como glória. não morreu nos nossos domínios. não foi em paris, não foi em bruxelas, nem em madrid. além disso, aquilo a que chamamos de ciclos noticiosos cada vez mais se acelera, cada vez mais nos falta indignação e energia para cada um dos escândalos, cada uma das catástrofes, cada vítima, cada dor. não temos que chegue, nem queremos ter. custa demasiado: melhor surfar sobre tudo isto, com umas partilhas de fb e tuita, e ala que vem a vaga seguinte. e este nós, volto a sublinhar, é nós mesmo – eu incluída, todos os jornalistas incluídos, tudo incluído.

 

daí nunca mais termos querido saber da história de glória, desta história, nunca termos perguntado: e depois? como foi? que se passou? que se passa depois das notícias? não saberíamos, não saberia, eu, se mariana não me tivesse ligado. obrigada, mariana, por nos lembrar; obrigada por nos dar oportunidade de saber, de querer saber. e de sentir. e de, talvez, podermos fazer alguma coisa.    

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