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A nova Justiça: primeiro estranha-se, depois entranha-se

Dizer que ainda sou do tempo em que os processos nos tribunais se cosiam com agulha e linha, não é sinónimo de dizer que ando nisto há décadas. Na verdade, como advogado, pus pela primeira vez os pés num tribunal em 1995. Nessa altura, no que se havia de manter até há bem pouco tempo, o amontoado de folhas que ia constituindo o processo era ajuntado com recurso a um inovador sistema de costura. Cada vez que chegava um novo requerimento, o oficial de justiça, de dedal (daqueles de contar dinheiro) enfiado no indicador ou no médio, lá desfazia a cosedura ao processo, inseria as novas folhas, pegava na agulha e vai de suturar de novo, repondo as linhas no seu lugar original. Entretanto, há meia dúzia de anos, chegou o “revolucionário” sistema de ferragens e lá deixou de ser requisito essencial para ascender à carreira de oficial de justiça a perícia de costureirinha.

Faço aqui um parêntesis para explicar que incumbia à parte que juntava a peça processual aos autos juntar também os respectivos duplicados. Um para o processo principal, propriamente dito, outro para a parte contrária e, este é que é, outro para a chamada reforma do processo. E em que se traduzia a reforma do processo? Caso acontecesse alguma coisa ao processo original, morte por afogamento, por exemplo, o processo poderia ser reformado na íntegra pelas tais folhas que os advogados, prestimosamente, iam juntando para os dias do apocalipse. Este sistema comportava dois “pequenos problemas” (pelo menos em grande parte dos casos que fui conhecendo): por um lado os próprios tribunais não faziam a sua parte, isto é, os despachos judiciais não eram fotocopiados para a reforma; por outro lado, os tais duplicados juntos pelos advogados eram agrafados no lado interior da contracapa do processo original. Digamos que havia uma crença cega, espécie de acto de fé, que em caso de incêndio ou furto, por exemplo, a volumosa e amealhada contracapa seria sempre salva. Que as chamas a poupariam e que os larápios concederiam em não a levar.

Esta era parte da realidade dos tribunais até muito recentemente. Entretanto, passou a haver a hipótese de remeter electronicamente as peças para o tribunal. A coisa foi evoluindo, de uma forma algo embrionária e com alguns aspectos anedóticos pelo meio, para a versão actualmente disponível, o tão criticado, pelos magistrados judiciais, CITIUS. “O Citius é o projecto de desmaterialização dos processos nos tribunais judiciais desenvolvido pelo Ministério da Justiça. Englobando aplicações informáticas para os diversos operadores judiciais (como o “CITIUS – Magistrados Judiciais” para os magistrados judiciais ou o “Habilus” para os funcionários judiciais), é disponibilizada agora a aplicação destinada aos mandatários judiciais.”

 

Em que é que isto se traduz, no que a um advogado diz respeito? Acabei agora mesmo de fazer um requerimento. Abri a aplicação, inseri a peça, remetia-a para o tribunal, notifiquei por essa mesma via o colega. Fiquei com comprovativo da entrega em tribunal e da notificação do colega. Evitei uma deslocação ao tribunal e outra aos correios para notificar o colega, caso optasse por não o fazer via fax ou por mail, para o que teria que pagar uma espécie de estampilha electrónica. Evitei despesas administrativas. Não gastei dinheiro com o tempo que a funcionária perderia a fazer essas tarefas, e posso destinar-lhe outras. Com o CITIUS, tenho ainda a suprema maçada de poder consultar o processo sem me deslocar a tribunal, de ser notificado electronicamente pelo tribunal dos despachos e sentenças e pelos colegas das peças que juntam aos autos.

Se de início me custou? Um pouco, que a mudança acarreta sempre alguns transtornos. Neste momento perco, pessoalmente, mais 5 minutos do que perdia antes, são os 5 minutos para inserir a peça no CITIUS. O que eu ganho ainda não é quantificável, mas é bastante. Em agilidade e imediatismo processual e em custos administrativos. Ora, segundo a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) as vantagens do CITIUS são «alcançadas à custa da funcionalização e burocratização do trabalho do juiz, o que é irracional e improdutivo». Tal conclusão, de uma sobranceria habitual nalguns magistrados, parece conversa de funcionário público acomodado. Preferiam limitar-se ao mero despachozinho de caneta em riste? E o oficial de justiça que se encarregasse do resto? Pois habituem-se. Que eu também me habituei e à custa da “funcionalização e burocratização”, se assim lhe quiserem chamar, do meu trabalho.

O sistema não é perfeito, efectivamente. Se fosse perfeito chamava-se magistrado judicial, e não CITIUS. Tem falhas. Há dúvidas acerca dos acessos, de quem os pode fazer e de quem os faz - avance comissão, que o Nuno Melo já está livre da anterior. Há tempos, perdeu-se-me um requerimento executivo, que há-de pairar algures no limbo, se o fim deste não tivesse já sido decretado. Barafustei, queixei-me e como o problema teimou em não se resolver sozinho, resolvi-o eu. São coisas das coisas. Tenho resolvido todas as questões que me têm surgido. Tenho-me queixado quando tenho de o fazer, mas sempre numa perspectiva construtiva. Porque o CITIUS é realmente útil. Exige formação, constante actualização? Pois que a faça quem a não tem, percam as mesmas horas que eu perdi com a minha instrumentalização em prol do sistema. Em prol do sistema judicial, sublinho, que não numa perspectiva corporativista do trabalho que isto dá ou deixa de dar.

Sair da cepa torta dá trabalho, é um aborrecimento. Aquilo que alguns juízes chamam de “burocracia informática” é o inevitável futuro e sobrevivência da justiça e não é burocracia. É exactamente o oposto, que burocracia em estado puro era aquilo a que eu aludi nas primeiras linhas deste post.

A ASJP pede a «suspensão imediata da desmaterialização obrigatória dos processos até à conclusão [duma] avaliação», pede a «melhoria do grafismo e funcionalidade do sistema informático CITIUS», pede o «fornecimento de equipamentos informáticos adequados a uma utilização diária e intensiva». Pede e faz muito bem em pedir, mas francamente não deve haver lugar a suspensões. Avancem com o que têm, aguardem, reclamando a falta todos os dias, se necessário for, pelo que não têm. Safem-se como puderem, no entretanto. As paragens, suspensões, comissões de avaliação servem apenas para concluir pelo óbvio: que é preciso reformar. Mas a reforma já está aí e o CITIUS, mais que mero instrumento, é elemento essencial da mesma.

Este Governo começou, de forma que publicamente considerei demagógica, por reduzir as férias judiciais. Achava, e continuo a pensar da mesma forma, que o mês de férias judiciais a menos vem, por estranho que possa parecer, atrasar os processos. É que férias judiciais não são férias dos juízes, dos procuradores e dos oficiais de justiça. E se nalguns casos assim acontecia, se havia abusos, então havia outras formas de resolver o problema. Férias judiciais não são sinónimo de tribunais fechados, significam um stand by essencial nos processos não urgentes, interrupção na contagem dos prazos, precisamente para que haja tempo para trabalhar de forma mais aprofundada nos ditos processos não urgentes  – este facto só será um paradoxo para quem anda fora disto. Reduzir esse tempo de 60 dias para 30 dias foi manifestamente um exagero, mesmo porque na prática é impossível assegurar que os tribunais trabalhem em pleno durante os 30 dias que se cortaram às férias judiciais – é mais ou menos evidente que os funcionários, os juízes e os procuradores não podem todos tirar férias em Agosto.

Ainda assim, concedo que os resultados poderiam ser bastante melhores se (alguns) agentes da justiça não resolvessem ter entrado numa espécie de greve de zelo. Em sendo caso disso, e passe a caricatura, deixam-se palavras a meio para se poder sair às cinco. E depois, como em tudo, lixa-se o mexilhão, lixam-se os que trabalham em regime de não-escravidão ao relógio. E muitos fazem-no noite adentro, nos tribunais. Assim, não há boa intenção (que ficou por demonstrar) que resista. Acredito que, se não fosse esta guerra fria e esta espécie de chantagem subliminar, o Governo acabaria por ir aos 45 dias. E aconselho vivamente que o faça, que dê um passo atrás para poder exigir um passo em frente.

Quanto à desmaterialização dos processos judiciais, nada a apontar, como disse atrás. Para a frente e em força. Peçam-se e aceitem-se conselhos, corrijam-se os erros que houver a corrigir, mas não se cedam a chantagens.

Uma última palavra para fazer alusão à acção executiva: a última reforma, que se aplica aos processos que deram entrada a partir de Abril, parece-me ter limado algumas arestas, mas ficou aquém do esperado. Alguns retoques na figura do agente de execução, liberdade da parte para destituir o solicitador de execução são emendas essenciais, mas é preciso ir ao fundo da questão. Porém, a verdade é que a execução, venham as reformas que vierem, há-de sempre esbarrar na insolvência dos devedores – e nesse caso não há milagres. Há que atacar a montante, que prevenir, que a execução é um remédio; há que regular de forma implacável o crédito ao consumo. O crédito fácil concedido por “aquelas empresas”, como a elas se referem, envergonhados, os que se deixaram ir no engodo.

Em suma, este Governo mexeu mais na justiça, que ninguém elogiava, em quatro anos do que os anteriores Governos desde o fim da ditadura. Mexeu muito e onde era preciso mexer muito. Aqui e ali bem, acolá mal. Há que continuar a dar-lhe tempo para emendar o que fez mal. É necessário, por exemplo, parar de reformar em cima das reformas, como que por tentativa, que não se admite ter que trabalhar com três ou quatro versões do Código de Processo Civil - convenho o mundo que é o Processo Civil, mas é imperioso fazer a refoma global ao mesmo tempo, ainda que demore mais uns meses.

Termino dizendo que há que impedir a todo o custo que a política do papel rasgado avance pelos tribunais adentro. Uma chicotada psicológica seria, nesta altura do campeonato, a morte do artista. Rasgar o que se fez nestes quatro anos de políticas no âmbito da justiça e das reformas dos tribunais é mais do que retroceder quatro anos: é voltar ao século passado. Há, por isso, que garantir que tal não acontecerá. Como aquele “dito por não dito” a que MFL ontem se prestou não me convenceu, parecendo-me o assumir de um desnorte estrutural do PSD, o assumir de uma perniciosa navegação à bolina, tiro as minhas conclusões.

2 comentários

  • Maria,
    Isso de que fala não é bem um risco. De resto, não sou propriamente um lobby. Percebo os juízes, grande parte dos que conheço suam a camisola e não lhes endereço o meu post.
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