One Step Behind
O Dail, Parlamento Irlandês, aprovou a nova legislação - por um voto - que criminaliza a blasfémia. A lei aprovada manteve as disposições que permitem, entre outras aberrações, que a Garda Siochana (a polícia irlandesa) confisque o que lhe parecer «blasfemo» e invada em altura «razoável», com uso de força «razoável», domicílios ou outros sobre que existam suspeições «razoáveis» de conterem material blasfemo.
Devo confessar que me intriga encontrar numa lei completamente irrazoável esta insistência no termo «razoável» - igualmente manifesta na tal «pessoa razoável» que um blasfemo pode arrolar para a sua defesa e que «encontra genuíno valor literário, artístico, político, científico ou académico na matéria blasfema».
É particularmente bizarro, se percebi a explicação do Rogério, que seja a blasfémia o único «crime» da legislação em vigor nos países da CE em que não há in dubio pro reo e em que o ónus da prova recai sobre o acusado e não sobre o acusador. É para mim especialmente aberrante que a polícia possa invadir de forma razoavelmente violenta a casa de alguém, apreender e destruir bens desse alguém sem qualquer dúvida nem prova de «crime», apenas as alegações de insulto nas suas crenças de um qualquer grupo de beatos.
Nem consigo imaginar o que poderá acontecer se esse grupo decidir ulular contra a obra «blasfema» dos 4 cavaleiros do ateísmo no vídeo - ou Helen Ellerbe, Salman Rushdie, Bertrand Russell ou uma lista enorme de autores que muito irritam e ofendam um número não despiciendo de crentes. Existirá certamente suspeição «razoável» de que livrarias, bibliotecas, a associação humanista ou a ateísta e mesmo muitos particulares possuam cópias de material acusado de blasfemo. Será que a polícia irlandesa vai invadir e vandalizar, em altura razoável e com violência razoável apenas se necessário, não só livrarias e bibliotecas mas também a casa dos cerca de 250 000 ateus irlandeses se isso acontecer?
Por outro lado, certamente que muitos crentes se sentem insultados nas suas convicções «sagradas» pelas declarações do padre Russell que afirmou ser apenas uma árvore aquela no seu condado de Limerick (no pun intended) que um número (con)substancial de peregrinos convertidos em adoradores de árvores visita em romaria na crença de que se trata de (mais) um milagre da Virgem. O que acontecerá se algum destes peregrinos acusar o padre Russell de blasfémia? Ou se um crente em qualquer outra religião se declarar insultado pelos conteúdos litúrgicos das homilias cristãs, nomeadamente pelas partes que referem que só há salvação em Cristo? Ou se um católico acusar de blasfémia alguém que se recuse a engolir o dogma da infabilidade papal? Ou se um LDS ou SUD não gostar que alguém mencione a reputação dúbia dos calhaus debaixo de chapéu de Joseph Smith * ou ... milhentas outras coisas passíveis de serem consideradas «blasfemas»?
De facto, a razoabilidade não é apanágio de nenhuma religião e muitos crentes declaram-se insultados por tudo e mais umas botas. Não é assim muito complicado prever que a Irlanda será dentro em breve palco de episódios caricatos, dignos de integrar uma versão real da Vida de Brian, em particular se Michael Nugent concretizar a sua promessa de emulação de Bernard Shaw ...
*Conhecidos em Portugal graças aos «Elders», os jovens mormons que, como parte integrante da sua fé, passam uns anos fora do seu Utah natal em quasi mandatórias tarefas de evangelização, tentando converter «gentios» para a verdadeira fé, os LDSs (ou SUDs, santos dos últimos dias, como devem ser conhecidos os fiéis dos disparates debitados por Smith) contabilizam cerca de 12 milhões em todo o mundo.
Nascido aos 23 de Dezembro de 1805 em Sharon, Vermont, numa família pouco dada a religiões organizadas mas prenhe de indíviduos atreitos a visões celestiais e comunicações pessoais do panteão celeste, o fundador da seita, Joseph Smith, teve um início de vida algo atribulado, mercê da incapacidade familiar em assegurar proveitos para alimentar a prole.
De facto, quando o profeta tinha cerca de 15 anos a família foi expulsa de Sharon, de acordo com algumas fontes por serem considerados vagabundos indesejáveis. A família estabeleceu-se então em Palmyra, na zona ocidental do estado de New York. Aparentemente a mudança não alterou significativamente as condições da família e os rendimentos familiares continuaram parcos até à súbita eclosão de capacidades paranormais no jovem rebento.
De acordo com algumas fontes, a presciência de Smith com pedras «mágicas» surgiu durante a adolescência, inspirada por um mágico itinerante, que pretendia conseguir localizar água e tesouros escondidos pelos indíos e «ofereceu» à cidade os seus préstimos nesta especialidade pela módica quantia de 3 dólares diários. As capacidades sobrenaturais do charlatão eram supostamente conferidas por pedras «mágicas» e fascinaram o jovem Smith. Quando os serviços oferecidos pelo «adivinho» se revelaram infrutíferos e este foi convidado a abandonar (rapidamente) a localidade, já o jovem «profeta» dominava q.b. o hocus pocus indispensável à arte de bem enganar os incautos. Outras fontes indicam que essa arte foi uma herança paternal…
Independentemente da origem da aprendizagem, é certo que um tal Josiah Stowell, impressionado com relatos da clarividência e artes mágicas do jovem, o convidou a deslocar-se para o outro lado do estado, para a propriedade de Isaac Hale em Susquehanna Valley, para que Smith «adivinhasse» o paradeiro de um tesouro supostamente aí escondido pelos espanhóis.
Como assalariados de Stowel e Hale, pai e filho deslocaram-se para a quinta do segundo onde, como «adivinhado» por outro perscrutador de cristais «mágicos». De acordo com o contrato firmado com os dois crédulos empregadores, os Smith deveriam encontrar uma «mina valiosa de ouro ou prata e também … moeda cunhada e barras ou lingotes de ouro ou prata» (Salt Lake Tribune, 23 Apr. 1880). O presciente adivinho procedia ao seu «trabalho» enterrando a cara num chapéu contendo as indispensáveis pedras «mágicas» e adivinhando localizações para o precioso tesouro; a parte menial de escavação cabia a uma equipa de esperançosos e crédulos caçadores de tesouros. Infelizmente, Smith não conseguiu localizar o tesouro devido, segundo ele, a um «encantamento» lançado sobre o dito, tão poderoso que nem a magia de Smith o conseguia quebrar. Smith, que se tinha apaixonado pela filha de Hale, Emma, caiu por isso em desgraça aos olhos do decepcionado futuro sogro.
Na Primavera de 1826, alguns caçadores de tesouros desiludidos acusaram Smith de «conduta desordeira» e de ser um «impostor». Este foi julgado e, com a ajuda de Hale que se incluía nas testemunhas de acusação, considerado culpado de ambas as acusações num tribunal de Bainbridge, New York. Não existem registos da pena imposta ao jovem charlatão mas sabe-se que em Janeiro de 1827 Joseph Jr conseguiu subtrair Emma das mãos do recalcitrante Hale e fugir com ela.