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Feeling the blues...

Há 3 dias, assinalou-se o cinquentenário do Kind of Blue de Miles Davis, o álbum que quer neófitos quer apreciadores hardcore de jazz concordam ser indispensável na sua discografia. Para se perceber porquê, vale a pena ouvir as conversas de Ave Carrillo com o baterista Jimmy Cobb e os professores Ashley Kahn e Gerald Early.

 

Em jeito de homenagem, e porque de música só percebo na óptica do utilizador, fica um pequeno apontamento químico sobre o fascínio que a cor sempre exerceu na humanidade e em particular porque, exemplificando com o azul, esse fascínio se traduziu numa série de expressões idiomáticas. Por exemplo, a origem da expressão sangue azul, sangue blu, usada quasi universalmente para designar membros da realeza (e aristocracia), está ligada à púrpura, na realidade, púrpuras, dos mais importantes e mais caros corantes da História, utilizados pelas elites até à queda de Constantinopla em meados do século XV.

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A púrpura era obtida a partir da secreção mucosa produzida pela glândula hipocondrial situada junto do tracto respiratório de moluscos do género Purpura, por exemplo purpura haemostoma, e do género Murex. Estima-se que eram necessários cerca de 10 000 destes moluscos para produzir 1 grama de corante, cujos diferentes tons dependiam do tipo de molusco e do método extractivo utilizados. Não é por isso de espantar que o seu preço fosse muitas vezes mais elevado que o ouro e que apenas pessoas muito abastadas se pudessem dar ao luxo de usar roupa tingida com estes corantes, normalmente restritos à realeza e ao clero.

Durante o Império Romano, apenas o imperador podia aparecer em público com um manto tingido de púrpura imperial, enquanto que aos senadores imperiais estava reservado o uso de uma barra púrpura na toga branca. No século I, Nero fez mesmo publicar um decreto que dava ao imperador o direito exclusivo à cor púrpura. Carlos Magno e restantes imperadores do Sacro Império Romano continuaram a usar o púrpura imperial enquanto os restantes reis europeus preferiam uma tonalidade mais azul, denominada púrpura real.

A associação destes corantes com a realeza e o alto clero é muito antiga, e já os textos bíblicos referem o púrpura, argaman, que deveria tingir as cortinas do tabernáculo e as vestes sacerdotais, e o tekhelet, um corante azul obtido de uma criatura marinha que a Torah refere como chilazon, que deveria ser usado para tingir os talit (xailes) com que os judeus se cobrem durante as orações.

 

Não há quaisquer dúvidas sobre a importância para a economia nacional de outro corante púrpura, a que Teofrasto, o filósofo que sucedeu a Aristóteles, se refere como dando origem a uma cor mais bela do que a púrpura, extraído do líquen Roccela tinctoria. A urzela, orcina, ou ervinha, introduzida nos Açores no século XV, foi uma importante fonte de rendimento do arquipélago. A partir da urzela preparava-se uma tintura de um vermelho violáceo exportada para a Flandres, onde era comercializada como «púrpura francesa».

 

Um azul bem menos intenso que o azul/púrpura real era uma cor mais acessível na Idade Média - contrariamente ao «sangue», uma cor mais do povo. E por ser mais do povo, o corante conhecido cá no burgo por pastel ou pastel-dos-tintureiros deu origem a expressões idiomáticas mais plebeias. Obtida da Isatis tinctoria, a fonte europeia de anil ou indigo, a sua importância económica no Portugal medieval traduz-se no facto de que ainda hoje «pastel» é sinónimo de dinheiro.

Como indica o nome (de indicum, «da Índia»), a fonte mais importante daquele que alguns historiadores consideram o corante mais antigo alguma vez utilizado, era a Indigofera tinctoria, uma planta nativa da Ásia. Vasco da Gama abriu o caminho à importação para a Europa do indigo indiano, de muito melhor qualidade e cerca de 30 vezes mais concentrado que o pastel. Na Alemanha, ou antes, em alguns estados da confederação que continuava a ser conhecida como Sacro Império Romano, a utilização do indigo indiano foi proibido por lei, sob pena de morte, para proteger os camponeses locais da competição estrangeira. O indigo «estrangeiro» foi declarado a «cor do demónio» em 1654 e apenas foi legalizado em 1737.

Permanecem algumas expressões idiomáticas que reflectem a importância do indigo na Alemanha, como Blauer Montag (segunda-feira azul, que significa não trabalhar à segunda-feira) e Blau werden (ficar azul, isto é, a cair de bêbedo). A origem destas expressões tem a ver com o facto de o indigo ser um corante de tina, isto é, não é solúvel em água na sua forma corada sendo necessário aplicá-la numa forma dita leuco, incolor, que depois é oxidada à forma corada por exposição ao ar. A forma incolor do indigo era extraída com água e acreditava-se que adição de urina, em particular urina de quem consumira grandes quantidades de álcool, surtia melhor efeito na fixação da cor. Os tintureiros usavam muitas vezes a própria urina na processo de fermentação do pastel e mergulhavam os tecidos nas tinas, normalmente ao domingo, por pelo menos 12 horas. Assim, domingo era dia para os tintureitos beberem até cairem, já na segunda-feira, ao lado dos tecidos que penduravam em varais.

 

Já a expressão feeling the blues, que deu nome a outro género musical nos EUA, tem uma origem pouco química: quando o comandante ou um oficial da marinha americana morria durante uma viagem, o navio regressava ao porto com bandeiras azuis e com uma faixa azul pintada no casco. Outra expressão anglo-saxónica muito comum, out of the blue, é utilizada para designar acontecimentos inesperados, tão inesperados quanto um raio caindo de um céu azul. O que nos remeteria para outra história quimicamente fascinante do nosso planeta azul, que, contrariamente ao que a esmagadora maioria das pessoas pensa, não o é por ser azul devido à reflexão da cor do céu a água que vemos do espaço. Mas esse é um Kind of Blue totalmente diferente que fica para outra ocasião.

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