"Dormindo com o inimigo", crónica do Vasco Barreto no Metro de hoje
"Quem está de fora pode ter um melhor ângulo de análise do que quem está por dentro, lapalissada ilustrada pelo Nobel Joseph Brodsky com o exemplo mais luminoso ao alcance de quem não conhece os nossos especialistas em educação: para explicar a loucura, conta mais a opinião do psiquiatra do que a do louco. É apenas por isso que me sinto autorizado a escrever sobre violência doméstica, porque nenhum outro tema me poderia ser menos familiar. Não imagino o que seja viver sob a ameaça permanente de uma tareia, cresci no seio de uma família harmoniosa, pelo que não tenho dessas más recordações de infância, e os traumas domésticos actuais são recorrentes e do tipo craniano, sim, mas invariavelmente por causa do tecto da minha cozinha de mansarda.
Desde o princípio do ano, 18 mulheres foram mortas pelos companheiros, 11 escaparam por sorte e, em 2007, foram registados 22 000 crimes de violência doméstica. Esta é a parte exposta de um iceberg imerso num mar de medo, preconceito e dependência. Cancro? Acidentes de viação? Guerra? Não. Segundo o Conselho da Europa, a principal causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos é a pancada que levam em casa, por ciúme, alcoolismo, tara ou frustração. A ser verdade que uma em cada cinco mulheres é vítima de violência doméstica, basta que 1% do público deste jornal passe os olhos por esta crónica para que hoje 700 dessas vítimas me leiam. Experimento algum desconforto, porque se já dei por mim a imaginar o leitor como vítima, foi apenas por duvidar da qualidade das minhas metáforas. Mas já que chegámos até aqui, exploremos até ao tutano a lapalissada de abertura.
Por defeito profissional, o bastonário da Ordem dos Advogados tem uma visão distorcida quando defende que a violência doméstica, que passou a crime público em 2000, devia deixar de o ser, para permitir que a vítima desista da queixa se assim o entender. Um absurdo. A desistência está assegurada, a essência do crime público é que o início do procedimento criminal não está dependente de queixa da vítima, bastando uma denúncia. Trocado por miúdos, a lei não consagra o ditado “entre marido e mulher não se mete a colher”. E que noção perversa de privacidade nos levaria a fechar os olhos perante sinais óbvios de maus-tratos, só porque o agressor e a vítima vivem juntos? Se o constante aumento das denúncias de violência doméstica traduz – vamos acreditar – uma maior confiança na lei e uma evolução do estatuto da mulher na sociedade, deixemo-nos de saudosismos.
Pela sua condição de vítima, também a leitora pode acusar uma visão distorcida do seu problema. Imagina que não há solução, por temer represálias ainda mais graves, sobre si e aqueles a seu cuidado. Pior, pode pensar que essa é a sua condição. Não é assim. Um bom conselho, não deste cronista mas de quem lida com estes problemas delicados, está aqui: 800202148. A linha da Comissão Para a Cidadania e Igualdade de Género funciona ininterruptamente. A voz que me respondeu há pouco era de uma senhora muito simpática e desliguei logo por vergonha, mas não faça como eu."
(Descaradamente roubada daqui, com autorização da própria e do autor)

