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Os grupos de risco, os riscos dos grupos de risco, o riscar dos grupos e assim

Sob os auspícios da ONU decorreu em NY um encontro internacional sobre SIDA, na sequência do qual surgiram divergências entre os experts face ao risco de uma de epidemia mundial entre os heterossexuais e, consequentemente, críticas perante as estratégias de prevenção a utilizar.

A informação não foi passada de modo suficientemente claro e vá de ressurgir a questão da definição de “grupos de risco” – um equívoco, do meu ponto de vista.

A existência de diferentes perfis epidemiológicos determina, naturalmente, abordagens distintas em termos preventivos, mas tal não significa que a noção de "grupos de risco" seja uma mais valia preventiva relativamente à de "comportamentos de risco". O que está em causa, mais que mudar o paradigma preventivo, é adaptá-lo às necessidades reais de cada local e de cada população alvo, para que a prevenção da propagação da infecção consiga atingir os níveis de sucesso das abordagens terapêuticas, unanimemente aceites pelo painel de epidemiologistas presentes no encontro. Estamos também, e sobretudo, a falar de distribuição de verbas, obviamente.

Elizabeth Pisani, epidemiologista americana, é uma das vozes críticas das políticas preventivas que têm sido levadas a cabo pela OMS. Em todo ocaso é abusivo dizer que ela defende o retomar da noção de grupo de risco como uma mais valia preventiva.

Vejamos a sua opinião a propósito do Brasil, país que nas suas palavras “é uma excepção mundial”. Pisani tece rasgados elogios ao trabalho dos organismos governamentais brasileiros que combatem a SIDA, capazes, segundo ela, de conter a expansão da infecção e, ao mesmo tempo, dar assistência aos doentes. De acordo com a sua opinião o Brasil é um exemplo típico de mistura dos dois padrões epidemiológicos de extremo, ocorrendo, em simultâneo, padrões de comportamento sexual parecidos com os de África e atitudes de risco típicas de outras partes do mundo ocidental, sendo o resultado um padrão de epidemia intermédio entre a África e o resto do mundo. “Se o governo brasileiro não agisse de forma tão eficiente na prevenção, o Brasil poderia ter um cenário de SIDA como o da África”, diz ela. E porque é que tal não está a acontecer? Elizabeth Pasini coloca duas possibilidades - sendo a libertação sexual do país um facto, as pessoas podem ser muito mais monogâmicas do que o imaginário colectivo supõe, ou, e esta é a sua segunda hipótese, ainda que mantenham múltiplos parceiros, os brasileiros e brasileiras aprenderam a lição e usam sistematicamente preservativos. “Eu penso que uma das grandes vantagens do Brasil na prevenção é que as pessoas são orgulhosas da sua sexualidade”, diz Pisani. “Em países dominados pela moral vitoriana, as pessoas dizem uma coisa e fazem outra, e isso torna tudo mais difícil.”

Ainda de acordo com esta epidemiologista, qualquer que seja a situação, ajuda muito na contenção da doença o facto do HIV não ser um vírus muito infeccioso. O período mais virulento – e, portanto, com grande potencial de transmissão - é nos dois ou três meses seguintes à contaminação, quando o vírus se replica abundantemente e o organismo ainda não consegue ter defesas suficientes para o combater. Passado este período há um intervalo de cinco a 10 anos em que a quantidade de vírus é baixa e a possibilidade de infecção menor. Mais tarde, quando o HIV vence as barreiras do sistema imunológico e volta a multiplicar-se, o perigo aumenta, ainda que sejam menores as possibilidades de contaminar novas pessoas, sobretudo porque já existe clínica de SIDA.

Depois de estalar a polémica nos media, a directora do programa nacional de luta contra a SIDA do Brasil, Mariângela Simão, referiu à revista “Época” estar preocupada com a possibilidade de que prevalecesse, nos meios de comunicação e na população em geral, a percepção de que não há risco de SIDA para heterossexuais «“Essa é uma idéia perigosa”, diz ela. Além disso teme que a direcção da OMS esteja se inclinando para posições que ela considera erradas – e que estão presentes nos artigos de James Chin. Uma dessas posições é a “medicalização” do combate à epidemia, representada, por exemplo, pela idéia da circuncisão em massa. Ela foi apresentada em um texto recente da revista The Economist como panacéia universal contra a transmissão do HIV. Estudos mostram que a circuncisão reduz a possibilidade de infecção em populações com índices elevados (mais de 15%) de prevalência de HIV. “Alguém acha que é possível baixar um avião cheio de médicos e circuncidar milhões de pessoas na África?”, pergunta Mariângela.

A outra tendência detectada pela médica brasileira é a de combater a epidemia com a pregação da abstinência sexual. Isso foi tentado pelo governo Bush nos Estados Unidos, diz ela, e não funcionou, mas continua voltando à agenda por trás de argumentos sobre o “comportamento sexual” das pessoas. “Há juízos morais por trás dessas coisas”, diz ela. Exemplo de sucesso no mundo inteiro, a campanha brasileira de combate à Aids assume que as pessoas farão sexo quando, como e com quem quiserem – e insiste com uma mensagem simples e fácil de entender, a da proteção permanente. Os números de São Paulo, capital nacional da epidemia, sugerem que esse método funciona. Em 1995, no auge da crise, foram notificados 4 112 novos casos de Aids na cidade. Em 2007 eles foram 1 693 – 34% a menos do que no ano anterior.

No ano passado, 13% dos novos casos de Aids no país envolveram homossexuais. “Há um crescimento evidente do número de casos entre heterossexuais”, diz ela. “Isso é tão claro que dizemos que epidemia está se feminilizando.” Vinte anos atrás, havia no Brasil 27 homens infectados por HIV para cada mulher. Hoje, essa proporção caiu para 1,6 homens por mulher. A tendência é clara, diz a epidemiologista brasileira – e é a mesma em toda parte. Os gráficos da OMS mostram que entre 1990 e 2007 cresceu o número de mulheres infectadas em todas as partes do Terceiro Mundo e da Europa Oriental. Na África ao Sul do Sahara, as mulheres são 60% dos doentes. Na América Latina e na Europa Oriental o percentual está por volta de 26% – 14 pontos percentuais acima de 1990.»

Portanto, concluir pela impossibilidade de uma pandemia à escala mundial e dar como certo que uma maior prevalência da doença num qualquer grupo justifica o uso do conceito de “grupo de risco” parece-me não só abusivo, como perigoso, com evidentes implicações negativas sobre as abordagens preventivas, únicas disponíveis para evitar a propagação da infecção – relembro a inexistência de uma vacina.

Tal posição não exclui a necessidade de uma gestão séria dos recursos económicos disponíveis, do mesmo modo que não exclui a obrigação de se fazerem diferentes campanhas, direccionadas para populações alvo, com mensagens adaptadas a cada um desses públicos - sempre muito agressivas, digo eu.

Mas usar as diferenças de opinião face às estratégias preventivas para chegar a estas conclusões é grave, desonesto e criminoso. Perante tão abjectas posições sou tentada a borrifar-me na discussão da existência de uma atitude preconceituosa subjacente…

 

Ps: estou com muito pouco tempo, podem eventualmente faltar links, prometo rever o texto e, a existirem, corrigir eventuais falhas formais.

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