Lendas urbanas: Tamiflu e anis estrelado
Desde os primórdios da humanidade que o homem utiliza as plantas para fins terapêuticos. Muitos medicamentos utilizam princípios activos encontrados em plantas ou deles derivados, como o ácido acetilsalicílico - a aspirina que substituiu o tóxico ácido salícilico em que se transforma no organismo humano a salicilina da casca do salgueiro. Nos últimos tempos, os polifenóis, de que falei brevemente a propósito da «química da felicidade suprema» e do vinho, têm merecido a atenção do público em geral devido à descoberta das suas propriedades anti-oxidantes - são sequestradores (scavengers) de radicais livres, o que inibe inúmeras doenças mediadas por estas espécias.
Alguns destes polifenóis naturais têm mesmo acção terapêutica reconhecida como os flavonóides silibinina, isosilibinina ou silicristina e silidianina do cardo mariano, que agem como estabilizadores das membranas dos hepatócitos, protegendo a célula hepática da influência nociva de substâncias tóxicas endógenas e/ou exógenas. A silimarina, o extracto do cardo que contém os três isómeros, é comercializada como Legalon sendo utilizada como coadjuvante no tratamento de doenças hepáticas crónicas, de lesões hepatotóxicas e ainda para tratar intoxicações pelo cogumelo Amanita phalloides.
Há certamente muitas plantas que contêm compostos com inúmeros efeitos benéficos e existirão certamente muitas mais cujo potencial terapêutico não foi ainda descoberto. Mas há igualmente muitas plantas que contam na sua composição compostos tóxicos ou muito tóxicos, incluindo plantas que durante milénios constaram das farmacopeias tradicionais. Por exemplo, e já que falei em cardos, o cardo do visco. Como todos os membros do género Atractylis - de que existe em Portugal também o cardo-coroado (Atractylis cancellata) - contém atractilosídeo e seus derivados que inibem a translocase de nucleotídeo de adenina, uma proteína mitocondrial envolvida na produção do «combustível» celular e são assim extraordinariamente hepatotóxicos. Não obstante a sua elevadissima toxicidade - e os casos fatais de envenenamento que infelizmente ocorrem com alguma frequência-, o cardo Atractylis gummifera continua a figurar em alguma farmacopeia popular como remédio para uma série de maleitas.
Tudo isto a propósito de um mail que circula desde o advento do alarmismo sobre a gripe A que reza que «O anis estrelado, amplamente cultivado na China, é o extracto-base (75%), da produção do comprimido Tamiflu, da Roche (empresa do antigo Secretário de Defesa dos EUA Donald Runsfield). Podemos usar o nosso anis mesmo - a erva-doce - pois esta erva possui as mesmas substâncias, ou seja, o mesmo princípio ativo do anis estrelado», continuando com uma exaltação das virtudes curativas da erva-doce, qual panaceia universal de acordo com o mail.
Na realidade, o anis estrelado e o «nosso anis mesmo» são plantas completamente diferentes que apresentam apenas em comum o facto de conterem grandes quantidades de anetol, o monoterpeno fenólico que lhes confere as características organolépticas distintivas. Na realidade também, há duas espécies de anis estrelado, o chinês e o japonês, e se o primeiro pode ser utilizado sem problemas o segundo é extraordinariamente tóxico, ou antes, alguns dos compostos naturais que contém, como o anisatin, são mortais se consumidos em doses não muito elevadas.
O fundo de verdade nesta lenda urbana é o facto de o ácido chiquímico, um polifenol abundante no anis estrelado e ausente na erva-doce, ser um precursor do Tamiflu, ou seja, é necessária uma série complexa de passos reaccionais para transformar este polifenol em oseltamivir. Curiosamente, o composto que de facto ambos os anises apresentam em comum, o anetol, também pode ser precursor de outro composto muito conhecido, infelizmente por outras razões: a para-metoxi-anfetamina (PMA), uma droga da família a que pertence o Ecstasy. Dizer que um cházinho de erva-doce previne ou «cura» a gripe A é assim completamente idiota e quem receber o referido mail ou suas variantes, por favor, não transmita aos mais incautos desinformação que pode ter consequências graves