Lixos muito tóxicos
Depois de Bento XVI denunciar os «resíduos tóxicos espirituais, que contagiam as populações de outros continentes», parece que a expressão pegou por bandas do Vaticano. Assim, ontem foi a vez de Ennio Antonelli, presidente do Conselho Pontíficio para a Família, utilizar o termo para se referir às execradas «ideologias de género» que não reconhecem a «ordem divina» expressa na inenerrante «antropologia bíblica».
Para o cardeal, é um lixo tóxico muito perigoso, para que a Igreja em África deve estar especialmente atenta, a profundamente errada e eticamente inaceitável «antropologia» exportada que «propõe soluções baseadas nos valores da igualdade, saúde e liberdade».
Há anos que Ratzinger denunciou esta antropologia com manias da igualdade, que «entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico». Sobre estoutra mania de pôr a saúde acima da religião, são esclarecedores os recentes dislates papais sobre o preservativo, confirmados por um Vaticano que se apressou a divulgar que não era verdade que o Primaz do Gana, cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, tenha dito que «por caridade, certamente recomendaria o uso de preservativos» e que os mal-entendidos divulgados na imprensa se deviam a um problema de tradução.
Mas o que parece ser mais eticamente inaceitável para Antonelli é a antropologia que defende a igualdade de direitos para todas as orientações sexuais, ou antes, que pretende «a equivalência de todas as orientações e comportamentos sexuais: heterossexual, homossexual, bissexual, transexual, polimorfo».
Embora suspeite que ninguém perceba bem o que é este «polimorfo» introduzido pelo prelado, as tolices cardeais foram corroboradas por outros intervenientes. Fiquei especialmente sensibilizada com as prédicas dos arcebispos da África do Sul e do Burkina Faso, que se indignaram contra uma «segunda onda de colonização, ao mesmo tempo subtil e sem escrúpulos» que tem a ver com uma «nova ética global que agressivamente tenta persuadir os governos e comunidades africanos a aceitar novos e diferentes significados para os conceitos família, casamento e sexualidade».
O representante da África do Sul, identificou na sua alocução o principal culpado por este descalabro: «As culturas de África estão sujeitas a uma forte pressão do liberalismo, da secularização e dos grupos de pressão que enxameiam as Nações Unidas».
Curiosamente, enquanto no Vaticano os clérigos se desdobram em acusações sortidas à famigerada secularização, por cá, outras afirmações extraordinárias pretendem o contrário. Pelo menos é o que se depreende do livro do padre João Seabra ontem apresentado por Marcelo Rebelo de Sousa, com a pompa e circunstância devidas. Numa reescrita da História que só posso classificar de estonteante, o responsável do Comunhão e Libertação afirma que «O Episcopado e o clero é que fizeram a verdadeira separação do Estado e da Igreja em 1911 e não o governo republicano». Retomando os termos que parecem estar na ordem católica do dia, o livro «O Estado e a Igreja no início do XX» parece esse sim lixo espiritual mas lixo tão imbecil que não chega a ser tóxico...