De afirmações extraordinárias sobre a laicidade e liberdade religiosa na 1ª República
No post «Lixos muito tóxicos» um comentador, de seu alias Jairo Entrecosto, invectiva muito acesamente o meu parágrafo final, que versa sobre as afirmações extraordinárias do padre João Seabra acerca da laicidade na 1ª República. Recordo o que escrevi: «Numa reescrita da História que só posso classificar de estonteante, o responsável do Comunhão e Libertação afirma que «O Episcopado e o clero é que fizeram a verdadeira separação do Estado e da Igreja em 1911 e não o governo republicano». Retomando os termos que parecem estar na ordem católica do dia, o livro «O Estado e a Igreja no início do XX» parece esse sim lixo espiritual mas lixo tão imbecil que não chega a ser tóxico...»
Outro comentador resume bem a incongruência da tese desenvolvida pelo nosso caríssimo Entrecosto, que se ouriça todo por um lado com a separação Estado-Igreja na 1ª República, uma coisa muito má que até levou (sic) a «assassínios de padres», e por outro por eu ter classificado de idiota a pretensão de que foi «O Episcopado e o clero» «que fizeram a verdadeira separação do Estado e da Igreja em 1911 e não o governo republicano».
Não há quaisquer dúvidas de que a separação do Estado e da Igreja foi um dos pontos quentes da 1ª República. A laicização levada a cabo pelos republicanos foi deplorada veementemente pelo clero, habituado ao poder absoluto. Nomeadamente, carpiram a perda substancial de influência na vida portuguesa ao ser anulado o juramento religioso nos tribunais e noutros actos oficiais. Os registos, como os actos relativos à família, o nascimento, o casamento, o divórcio e o óbito, até então efectuados na igreja, passaram para o Registo Civil.
Legislou-se ainda sobre o divórcio e a família e o regime de protecção aos filhos «ilegítimos» e respectivas mães; foram criados serviços de assistência pública; deu-se prioridade ao combate ao atraso educativo português - sobretudo no que respeita à alfabetização da população portuguesa, com mais de 80% de analfabetos em 1910 - etc., tudo «manobras» conducentes à «perdição», como advertira o papa Pio IX (ou Pio NoNo) uns anos antes na encíclica Quanta Cura sobre os erros do «modernismo» - e no seu apêndice o Sílabo de Erros, ou mais concretamente o Syllabus complectens praecipuos nostrae aetatis errores (Sílabo que abarca os principais erros do nosso tempo) .
O que aconteceu foi que alguns padres foram presos porque recusaram obedecer às novas leis republicanas e preferiram obedecer ao Papa Pio X, que se apressou a condenar devidamente a lei da separação numa encíclica, publicada quasi imediatamente após a lei de liberdade religiosa de 1911, a Iamdudum, uma encíclica que exortava à resistência, com todas as forças, ao «absurdo e monstruoso» decreto.
Aliás, como acontecera uns anos antes em França quando a lei de separação do Estado e da Igreja foi implementada, com Pio X a carpir a laicidade em pelo menos duas encíclicas, a Vehementer Nos e a Gravissimo Officii Munere. A primeira explicava quão horrível era a separação Estado-Igreja, «uma tese absolutamente falsa, um erro do mais pernicioso» que minava a «autoridade pública da religião» ao impôr uma ror de atrocidades, por exemplo, ao ultrajar a santidade e inviolabilidade do casamento (permitindo casamentos civis e divórcios), ao laicizar escolas e hospitais, ao abolir as orações públicas no início das sessões do Parlamento, o uso de sinais de luto nos barcos da marinha francesa na Sexta Feira Santa e o juramento religioso nos tribunais.
Apenas estas encíclicas de Pio X mostram quão imbecis são as pretensões do padre Seabra em particular se recordarmos que então vigorava o concílio Vaticano I. Segundo Küng, este concílio definiu a Igreja como uma monarquia papal absoluta - e a infalibilidade papal como uma infalibilidade a priori. De facto, a principal decisão do Concílio, para além da Constituição dogmática intitulada Dei Filius, que reafirmava a ortodoxia da fé católica, foi a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, que instituia o primado e infalibilidade do Papa quando se pronuncia ex-cathedra, em assuntos de fé e de moral. Parece completamente improvável que uma Igreja com o poder tão centralizado no Papa, que não deixava dúvidas em alguém o que pensava da execrada laicidade, tivesse tido a actuação que o padre Seabra pretende...
No entanto, reconheço que houve alguns excessos (embora, tanto quanto sei, não tenham ocorrido quaisquer assassinatos de padres) que teriam sido certamente limados não fora a vida atribulada e curta da 1ª República. Para o enfatizar, deixo aqui um excerto de um texto de Raúl Proença no Alma Nacional nº21, publicado em 30 de Junho de 1910, que me parece muito apropriado a esta discussão (o texto integral pode ser lido aqui).
«Há certas verdades de tal maneira elementares e centrais num partido democrático que pareceria redundância estar a pô-las em evidência. Mas na vida há tempo para tudo, menos para pensar. Daí o sobreexistir ainda hoje uma lamentável confusão entre os partidos políticos e as crenças religiosas, confusão que tem sido propositadamente favorecida pelos clericais e cegamente mantida por ingénuos ou fanáticos.»