jornalismo, mentiras e belém
Faz domingo um mês, o DN publicou o mail de um jornalista do Público que narra um encontro, em Abril de 2008, com o assessor de Cavaco para a Comunicação, Fernando Lima, em que este lhe comunicou a suspeita de que a Presidência estaria a ser vigiada pelo Governo e lhe sugeriu que o jornal noticiasse o assunto "fingindo" que este surgira da Madeira. Faz também dois meses que a primeira notícia sobre as "suspeitas" de Belém saiu no Público.
Esta semana, no programa da RTP1 Prós e Contras, o caso foi discutido do ponto de vista jornalístico, com os directores do DN e Público. Estiveram também o do Expresso, o da TSF e o do departamento de informação da RTP. Dos cinco, quatro (a excepção foi o do Público) não tiveram pejo em afirmar que não acreditavam que alguma vez o Governo tivesse vigiado a Presidência. Como se explica então que toda a comunicação social tenha embarcado na "notícia"? A justificação foi dada no programa: a simples vocalização das "suspeitas" era notícia por "abrir uma crise institucional". É certo. Aliás, se havia notícia para dar desde o início - desde Abril de 2008 - era a de que um assessor do PR, homem da sua confiança há décadas, propôs uma inventona a um jornalista. Mas o jornalista alinhou em vez de a denunciar, pedindo ao correspondente na Madeira que investigasse. A "notícia", sabe-se, não saiu logo. Justifica o director do Público, na resposta que deu ao provedor do mesmo e que foi publicada a 13 de Setembro de 2009: na altura não havia suficiente "confiança" para a publicar nem "fonte autorizada". Na verdade, a investigação feita pelo correspondente contradissera as "informações" dadas pelo assessor do PR. Mas ano e meio mais tarde a "notícia" saiu mesmo.
Porquê? Explica José Manuel Fernandes: "Um membro da Casa Civil do PR confirmou formalmente ao Público (...). No dia em que uma fonte autorizada(...) assume que no Palácio de Belém se suspeita de que o Governo montou um sistema para vigiar os movimentos do Presidente, essa informação tem uma tal importância e gravidade que só podia ter o destaque que teve." Ignoremos que esta "notícia", a qual segundo Fernandes "estava a ser investigada há ano e meio", não só não continha qualquer reacção do acusado, o Governo, como se escusava a concretizar a forma da qual se revestiria o tal "sistema de vigilância" e quem dele se ocuparia; concentremo-nos na "autorização" e no "formalmente". Se quase toda a gente, após a publicação do mail, se convenceu de que a fonte "autorizada" era Lima, Fernandes nega-o. No dia seguinte ao da comunicação de Cavaco, o seu editorial é claríssimo: "'O PR não desautorizou ontem os membros da Casa Civil que falaram ao Público: disse que só ele fala em seu nome - ele e os chefes da Casa Civil e da Casa Militar."
O que Fernandes nos anda a dizer há semanas é que quem "confirmou as suspeitas" ao Público foi uma ou mais dessas três pessoas. Ou seja, o próprio Presidente. Claro que Fernandes pode estar a mentir. Mas e se não estiver? Como muitas outras perguntas que o caso suscita, esta deveria estar a ser objecto de séria investigação jornalística. Porém, desde que Cavaco falou, os chamados "fluxos noticiosos" desviaram-se do assunto. Watergate é, está visto, uma coisa para a América, para filmes e para escolas de jornalismo. Bigger than life. E nós somos pequenos.
adenda: ler a propósito, também no dn, paulo pinto de albuquerque, com uma opinião jurídica interessante sobre a categorização legal da divulgação do mail, assunto que tem apaixonado tanta gente ao ponto de a fazer esquecer tudo o resto.