De cardos, espinhos e lendas urbanas
Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Eugénio de Andrade, Os trabalhos da mão (in Ofício de Paciência)
No post «Lendas urbanas: tamiflu e anis estrelado» referi brevemente o cardo mariano e o cardo coroado e a elevadissima toxicidade deste último, muito popular em algumas «medicinas» tradicionais.
No entanto, embora cantados por alguns poetas, os cardos são considerados erva daninha em Portugal. As plantas a que chamamos cardos pertencem, na sua maioria, à tribo Cardueae ou Cynareae cujas características distintivas são os espinhos e a ausência de flores liguladas, substituídas por flores tubulosas. Nem todos os cardos pertencem à mesma família, por exemplo o cardo marítimo recordado por Eugénio de Andrade é uma umbelífera.
Embora em Portugal o cardo espinhoso não mereça grande consideração, na Escócia é tido


A insignia da Ordem tem inscrito o motto nacional escocês, Nemo me impune lacessit, (Ninguém me provoca impunemente), motto muito semelhante ao da cidade de Nancy, Non Inultus Premor, (Ninguém me toca com impunidade), que tem igualmente o cardo como símbolo.
Mas se entre nós o cardo não está associado a lendas tão galantes como na Escócia, para além de nos recordar leite cru de ovelha Bordaleira Serra da Estrela coalhado com o cardo Cynara cardunculus fez parte do léxico do imaginário popular como repelente de bruxas e arma de protecção contra demónios, mau-olhado e doenças. Em relação a esta última utilização não somos muito originais, já que desde que o historiador grego Heródoto (484-426 a.C.), o Pai da História, o menciona nos seus escritos, as virtudes curativas de cardos sortidos têm sido louvadas nas páginas das enciclopédias médicas da época respectiva.
Os cardos foram ( e continuam a ser) abundantemente utilizados ao longo da História na farmacopeia popular, especialmente os já referidos cardo-mariano (Silybum marianum) e o cardo do visco (Atractylis gummifera) mas em particular o cardo-santo (Cnicus benedictus). Já vimos que se em relação ao cardo mariano parece existir um fundo químico que justifica a lenda, em relação ao cardo do visco está perigosamente enganada a «sabedoria popular», tão louvada pelo BE que a queria incluir nos curricula escolares ao lado da ciência.
Também não há muitas dúvidas de que não passam de lendas as virtudes atribuídas ao cardo-santo, o cardo de S. Bento que na Idade Média era visto como (outro) candidato santificado a panaceia universal - e talvez para evitar guerras no panteão católico, era utilizado conjuntamente com a angélica do arcanjo Gabriel na preparação do licor, conhecido hoje em dia como Benedictine, que supostamente seria um elixir contra a peste negra.
Hoje em dia continua a atribuir-se ao cardo bento capacidades curativas extraordinárias, do cancro à estimulação da lactação, e este é vendido como suplemento alimentar em inúmeros locais da internet. Mas não se reconhecem grandes virtudes à cnicina, a lactona sesquiterpénica que lhe confere o (extremo) amargor, tirando as suas excelentes qualidades de pesticida. Sabe-se que a dose letal em ratos se situa entre 0.6-1.3 g/kg pelo que embora os suplementos alimentares apenas indiquem a quantidade do cardo que contêm mas não a concentração de cnicina (que se vai degradando ao longo do tempo), não me parece provável que seja perigosa a sua utilização a quem não seja alérgico a sesquiterpenos - apenas demasiado amarga e francamente mais onerosa que um qualquer chá muito mais agradável ao palato. Como a cnicina é igualmente um emético bastante potente - em doses elevadas - parece-me no entanto totalmente apropriada a sua inclusão nas ditas cujas «medicinas» alternativas.