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De cardos, espinhos e lendas urbanas

Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.


Eugénio de Andrade, Os trabalhos da mão (in Ofício de Paciência)

No post «Lendas urbanas: tamiflu e anis estrelado» referi brevemente o cardo mariano e o cardo coroado e a elevadissima toxicidade deste último, muito popular em algumas «medicinas» tradicionais.

 

No entanto, embora cantados por alguns poetas, os cardos são considerados erva daninha em Portugal. As plantas a que chamamos cardos pertencem, na sua maioria, à tribo Cardueae ou Cynareae cujas características distintivas são os espinhos e a ausência de flores liguladas, substituídas por flores tubulosas. Nem todos os cardos pertencem à mesma família, por exemplo o cardo marítimo recordado por Eugénio de Andrade é uma umbelífera.

 

Embora em Portugal o cardo espinhoso não mereça grande consideração, na Escócia é tido em tão alta estima que figura no respectivo emblema nacional. As razões de tal escolha peculiar estão encobertas pelas brumas do tempo. Rezam as lendas e o folclore escoceses que, algures há uns largos séculos e em lugares diversos consoante a versão, os habitantes de uma dada aldeia ou de um certo castelo rodeados de cardos foram salvos de um massacre certo pelos gritos de invasores viking que imprudentemente se descalçaram para melhor surpreender os adormecidos escoceses.

É certo no entanto que desde 1470 o cardo é utilizado como emblema real na Escócia, introduzido pelo rei James III que criou nesse mesmo ano a condecoração honorífica que continua a mais alta da Escócia, a Ordem do Cardo, ou antes, The Most Ancient and Most Noble Order of the Thistle.

A insignia da Ordem tem inscrito o motto nacional escocês, Nemo me impune lacessit, (Ninguém me provoca impunemente), motto muito semelhante ao da cidade de Nancy, Non Inultus Premor, (Ninguém me toca com impunidade), que tem igualmente o cardo como símbolo.

Mas se entre nós o cardo não está associado a lendas tão galantes como na Escócia,  para além de nos recordar leite cru de ovelha Bordaleira Serra da Estrela coalhado com o cardo Cynara cardunculus  fez parte do léxico do imaginário popular como repelente de bruxas e arma de protecção contra demónios, mau-olhado e doenças. Em relação a esta última utilização não somos muito originais, já que desde que o historiador grego Heródoto (484-426 a.C.), o Pai da História, o menciona nos seus escritos, as virtudes curativas de cardos sortidos têm sido louvadas nas páginas das enciclopédias médicas da época respectiva.

Os cardos foram ( e continuam a ser) abundantemente utilizados ao longo da História na farmacopeia popular, especialmente os já referidos cardo-mariano (Silybum marianum) e o cardo do visco (Atractylis gummifera) mas em particular o cardo-santo (Cnicus benedictus). Já vimos que se em relação ao cardo mariano parece existir um fundo químico que justifica a lenda, em relação ao cardo do visco está perigosamente enganada a «sabedoria popular», tão louvada pelo BE que a queria incluir nos curricula escolares ao lado da ciência.

Também não há muitas dúvidas de que não passam de lendas as virtudes atribuídas ao cardo-santo, o cardo de S. Bento que na Idade Média era visto como (outro) candidato santificado a panaceia universal - e talvez para evitar guerras no panteão católico, era utilizado conjuntamente com a angélica do arcanjo Gabriel na preparação do licor, conhecido hoje em dia como Benedictine, que supostamente seria um elixir contra a peste negra.

Hoje em dia continua a atribuir-se ao cardo bento capacidades curativas extraordinárias, do cancro à estimulação da lactação, e este é vendido como suplemento alimentar em inúmeros locais da internet. Mas não se reconhecem grandes virtudes à cnicina, a lactona sesquiterpénica que lhe confere o (extremo) amargor, tirando as suas excelentes qualidades de pesticida. Sabe-se que a dose letal em ratos se situa entre 0.6-1.3 g/kg pelo que embora os suplementos alimentares apenas indiquem a quantidade do cardo que contêm mas não a concentração de cnicina (que se vai degradando ao longo do tempo), não me parece provável que seja perigosa a sua utilização a quem não seja alérgico a sesquiterpenos - apenas demasiado amarga e francamente mais onerosa que um qualquer chá muito mais agradável ao palato. Como a cnicina é igualmente um emético bastante potente - em doses elevadas - parece-me no entanto totalmente apropriada a sua inclusão nas ditas cujas «medicinas» alternativas.

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