saramago levado à letra
Hoje é lançado, em Lisboa, o livro Caim. É o que diz o convite, aliás bonito, que a Caminho enviou aos media. "A sessão terá presença do autor e a entrada é livre", esclarece. Bom, confesso que julgava que o livro já tinha sido mais que lançado, tanto que tenho ouvido falar dele. Apesar da tomada de posse de um novo Governo, do início da vacinação da gripe A e daquelas coisas todas (desemprego, dívida externa, crise económica, défice) que são sempre alegadas como os únicos assuntos aceitáveis quando alguém fala por exemplo de casamento das pessoas do mesmo sexo - embora, por acaso, sejam exactamente os que passam a vida a dizer que esse assunto não devia "consumir energias" aqueles que mais energia gastam, da deles e da dos outros, a clamar contra ele -, Saramago parece ter sido o grande tema da última semana e meia. Chego, pois, atrasada à discussão e sem grande vontade de me meter nela. Porque é recorrente, porque é repetida (já tinha sucedido até com Saramago) e porque é desinteressante. Saramago leu a Bíblia ou partes dela e caracterizou-a como horrível, disparatada e perigosa. E escreveu-o. E publicou-o. E chamou uns nomes ao deus da Bíblia. E depois? Depois apareceu uma série de gente ofendidíssima, como é costume de cada vez que alguém faz críticas aos chamados "livros sagrados", às divindades (ou melhor, à ideia da sua existência ou à representação das mesmas nos livros e nos discursos, já que só quem acredita em divindades as critica) ou aos "profetas". Até aqui tudo normal - milagre será o dia em que "autoridades religiosas" assistam com serenidade a opiniões diferentes das suas e que crentes mais tresloucados não apelem à guerra santa, seja sob a forma de pena de morte, como sucedeu com Rushdie, ou de "desnacionalização", como ocorreu a um eurodeputado de nome David. Mas desta vez apareceu também gente que, não sendo religiosa, verberou Saramago pela sua "leitura literal" , por "defender a censura" e até, pasme-se, pela sua parca escolaridade. Se calhar é altura de dizer que não sou admiradora nem da personalidade nem da obra de Saramago e que ser ateia não me coloca sempre em concordância com outros ateus, tal como ser católico ou islâmico não implica concordar com todos os católicos ou islâmicos (óbvio, não?). Mas não vejo o problema. A Bíblia é um conjunto de textos escritos ao longo de mil anos? É. Não é para ser lida literalmente? Por amor de deus, não. Se calhar é mesmo isso que Saramago está a dizer quando a ridiculariza - só pode estar a dizer isso, porque, é sabido, Saramago não crê. É que das duas uma: ou vemos aquilo como "a palavra de Deus" e portanto pode ser interpretado e decomposto por Saramago como lhe aprouver (só o tal deus sabe o que queria dizer) ou vemos aquilo como um conjunto de textos escritos por gentes diversas e Saramago pode interpretar e decompor como lhe apetecer (só quem escreveu sabe o que queria dizer e já cá não está para explicar). Alegar autoridade, eclesiástica ou académica, a propósito das opiniões de um escritor sobre textos escritos por pastores, pedreiros e soldados que têm sido apresentados durante séculos como ventríloquos de divindade é que é uma coisa um bocadinho disparatada. Ou não?