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jugular

em nome de salazar, esse grande libertador

a discussão sobre os crucifixos nas escolas portuguesas voltou. como os argumentos se repetem, repito aqui um texto publicado a 5 de dezembro de 2005 no glória fácil. para quem não tiver paciência para ler o texto todo, segue a conclusão:

 

imagine-se, há quem veja a liberdade de prisma ligeiramente menos absolutista. quem a proclame como individual e não colectivizante, quem se atreva a pensar que a crença e mesmo o partisanismo dos mais não implica a anulação dos menos (no sentido numérico, of course).

que defender a presença de um crucifixo ou de qualquer outro símbolo religioso nos edifícios públicos (não confundir com o espaço público, como muitos têm torpemente feito, esquecendo talvez que durante séculos, mais precisamente até ao século xx, foi a igreja católica que, através da sua aliança com os poderes existentes, negou às outras confissões o direito a visibilidade no espaço público, obrigando os seus templos a esconderem-se atrás de altos muros -- caso da sinagoga de lisboa) em nome da crença ou do desejo da maioria equivale a defender que lá se ponha o símbolo do partido que ganhou as eleições ou do clube de futebol com mais adeptos.


que a inépcia e o imobilismo de décadas não podem permitir que o cumprimento dos preceitos constitucionais seja apelidado de 'violento' e 'inesperado'. que a hierarquia da igreja católica e os seus fiéis escribas, que se comprazem em denunciar atentados contra a liberdade religiosa pelo mundo fora quando é a sua liberdade religiosa minoritária que está sob ataque em países onde a maioria professa outra religião, revelam nestas atitudes que nada aprenderam e nada se mostram dispostos a aprender das mensagens mais universais do seu maior profeta -- a tal mensagem que o crucifixo é suposto tornar presente.



que, por último, não se trata de negar a história mas de aprender com ela -- e que tentar combater uma medida justa e legal como a da retirada de símbolos religiosos dos edifícios públicos com a alegação de que se abriu guerra ao cristianismo e que a seguir vão (porque 'têm de', em nome da coerência, assevera-se) queimar as igrejas, arrasar o natal e abolir os feriados religiosos é pura e simples estultícia (mesmo se, do meu ponto de vista laico, me faz mais sentido celebrar o dia em que a inquisição queimou giordanni bruno que o da nossa sra da conceição, que não faço ideia quem seja).

 

a quantidade de dislates que se tem escrito a propósito da chamada 'guerra dos crucifixos' (uso a expressão por em si conter a génese do disparate) é de de fazer perder a cabeça a um santo (e como toda a gente sabe, tal não é o meu caso) ou de rebentar de riso o mais sorumbático(then again, not me).



de bagão félix a sarsfield cabral, de joão miguel tavares a barata feyo, para culminar no papa espada e nos habituais rigorismos informativos do espesso, les beaux esprits encontram-se na tese de que os crucifixos "são naturais", estão "naturalmente" nas salas de aula, em nome da "tradição" (pois claro, a tradição, esse garante de civilidade e progresso, esse sinónimo de bondade absoluta e inquestionável e, já agora, de 'cultura') e querer de lá retirá-los é como extirpar uma parte da alma ao país sem sequer um pó de anestesia, atentando contra a 'liberdade religiosa' da 'maioria cristã' e desrespeitando 'as mais fundas convicções' do povo, contra o 'bom senso' e a 'boa convivência' -- e a cultura, que, claro está, 'é de todos nós', mesmo dos muçulmanos e dos judeus e dos ateus.



sempre apreciei sobremaneira o o modo como se conseguem escrever as coisas mais abstrusas e contraditórias e, muitas vezes, absolutamente mentirosas, com o mais inefável ar de seriedade. joão carlos espada, por exemplo, chega ao ponto de, na primeira linha da sua crónica do espesso, certificar que 'parece que, na semana passada, terá chegado às escolas estatais uma ordem do ministério da educação para remover os crucifixos das salas de aula', o que apelida de 'gesto gratuito'.



parece (eu diria mesmo que é certo) que o dr (ou será prof dr???) joão carlos espada escreve n'importe quoi, não sabe do que fala nem se incomoda em saber (mas nada disso é gratuito, não)-- desde que, a propósito, possa citar a rainha de inglaterra, por acaso chefe de uma igreja, sobre as vantagens dessa mesma igreja (foi coincidência) e proclamar a 'indestrutibilidade do cristianismo' (porquê o receio, então? vai-se a ver e até pode ir à máquina a noventa graus e não encolhe), com esta citação tão curiosa: "quanto mais pequena a minoria, quanto mais severas as punições e ameaças, mais forte era a fé" (será que a inversa também é verdadeira? e que tal aplicar essa teoria do esmagamento e da sobreveniente virulência aos credos esmagados pelo cristianismo e ao apagamento da não crença em nome de uma fé 'maioritária'? pense lá nisso dr -- ou prof, ou o que for). dá-se o caso, dr, ou prof ou o que for, de que nunca houve notícia de que o ministério tinha 'na semana passada' dado ordem de retirada dos crucifixos das escolas estatais, pelo que lhe forneço, absolutamente de graça e sem tábuas nem fogo sagrado, um mandamento para a exposição pública de ideias: quando se resolve dar ares de reflectir sobre alguma coisa sempre convém ler mais que as manchetes dos jornais -- até porque, creio, a inverdade e a manipulação não fazem parte das virtudes cristãs, mesmo se às vezes parece.


o mesmo se aplica ao próprio do espesso que, fiel à sua própria tradição, titula um texto sobre o assunto crucifixos com esta estupenda exactidão -- 'só 20 escolas têm crucifixos' -- fundamentando o 'facto' (que é o nickname do espesso, como se sabe) em 'fonte oficial' do gabinete da ministra que teria dito ao jornal que 'o número de escolas nessa situação não ultrapassa as duas dezenas' e no último parágrafo do texto: 'em abril, a associação república e laicidade enviou ao ministério um pacote com cerca de 20 fotografias de crucifixos em salas de aula, pedindo a sua retirada ao abrigo da lei de liberdade religiosa e da constituição. os casos eram relativos a escolas abrangidas pela direcção regional de educação do norte, que a partir de maio enviou os ofícios exigindo que os símbolos fossem retirados'.



uuuuffff.


que seriedade, que rigor, que inatacável sentido do serviço público (note-se que o dito texto, que refere o início da acção do ministério como sendo relativa a maio, sai na mesma edição que o já citado artigo de espada, que a situa 'na semana passada'. eheh -- factos há muitos, e cabem todos no espesso) .


primeiro: a rl enviou 'um pacote'?????? jesus, maria, espírito santo. agora um documento, que por acaso está disponível no site da associação e foi enviado a uma série de media, é 'um pacote'?


segundo: só há 20 escolas com crucifixos, diz o ministério, e calha ser esse exactamente o número que é apresentado pelo'pacote' da rl? que extraordinária coincidência.


terceiro: mais extraordinária ainda se torna a coincidência quando se afiança que todas as escolas em causa pertencem à área da dren (mesmo, presume-se, as que estão situadas em sintra, e são várias as que no 'pacote' da rl ali se encontram -- o mapa de portugal é muito traiçoeiro, e as divisões administrativas do ministério da educação ainda mais). e que foram essas as escolas que receberam os tais ofícios da dren no sentido de que retirassem os símbolos.


quarto: a directora da dren já disse publicamente, sem ter sido desmentida por ninguém, que enviou ofícios a 'uma dezena de escolas'. se todas as outras dez fossem da sua área, por que motivo não teriam recebido ofícios? por outro lado, dá-se o caso de a ministra da educação ter já dito que os 'serviços' só agem no sentido de mandar retirar os símbolos quando 'alguém se queixa'. se o 'pacote' da rl constitui, do ponto de vista dos 'serviços', uma 'queixa', então não deveriam os símbolos ter sido retirados de todas as 20-escolas-20 referenciadas?


quinto: houve jornalistas que encontraram escolas com crucifixos em lisboa, no porto e em faro -- nenhuma das quais referenciada no 'pacote'. vai-se a ver e inventaram-nos (é isso ou o espesso não é um facto, é um artefacto).


sexto: por que será que não ocorreu às autoras do texto ouvir a associação do 'pacote' e, já agora, requerê-lo? grande mistério.


sétimo: suuuuuuuuuuuuuuuspiro.


mas, deixando o melhor para o fim, na boa tradição das bodas de canaan (ah-ah, por esta não esperavam), mas sem necessidade de maior milagre que o da existência de tão admirável criatura, chegamos ao homem das neves, tão adequado a esta quadra natalícia. que hoje disserta no dn sobre o assunto, sob o título 'os inimigos da liberdade'.


ah, valente.


nem mais, nem menos: tirar crucifixos ou quaisquer outros símbolos religiosos das escolas públicas do estado laico é atentar contra a liberdade -- porque 'os crucifixos na sala de aula são apenas um pequeno detalhe. mas um pormenor revelador de uma luta crucial da humanidade, a luta em prol da liberdade'.


que, pequeno detalhe, essa crucialíssima luta pela liberdade tenha sido iniciada por esse grande libertador, oliveira salazar, em 1936, esse ano de tão boa colheita em prol da liberdade por toda a europa e no mundo em geral, quando os judeus e outros subversivos (ciganos, comunistas, homossexuais, etc) eram 'limpos' em nome de pecados originais, não vem ao caso -- já se sabe que deus (o tal cuja inexistência, escreve das neves, não pode ser demonstrada logicamente, transformando assim 'o ateísmo em apenas a crença de que deus não existe' -- olé! se isto não é uma chicuelina com pirueta invertida e mortal triplo empranchado, do touro ao toureiro, não sei o que seja uma) escreve direito por linhas tortas (e que tortas, senhor, por piedade -- assim ainda fica com vista cansada). e que a verdade agora não interessa nada -- o que conta é lutar contra os infiéis, esses anti-cristos que por obra do demo lograram furtar-se a séculos de fogueiras, perseguições e purgas sortidas (e muito católicas), todas em nome da suprema liberdade, tolerância e bom senso, e aguentar-se até hoje para atentar desta forma contra os mesmos valores supremos, desta vez sob a forma de símbolos religiosos nas escolas públicas.


ah, valentíssimo, valentão sr das neves. daqui até à queima da constituição, da lei de liberdade religiosa e de quem as apoiar (e quiser, imagine-se, abrenúncio, vê-las cumpridas) já não falta decerto muito -- ou 'as comunidades cristãs', como disseram vários prelados, não estivessem já a um fósforo da indignação e do desespero (e dos archotes e das piras).


é que, imagine-se, há quem veja a liberdade de prisma ligeiramente menos absolutista. quem a proclame como individual e não colectivizante, quem se atreva a pensar que a crença e mesmo o partisanismo dos mais não implica a anulação dos menos (no sentido numérico, of course).


que defender a presença de um crucifixo ou de qualquer outro símbolo religioso nos edifícios públicos (não confundir com o espaço público, como muitos têm torpemente feito, esquecendo talvez que durante séculos, mais precisamente até ao século xx, foi a igreja católica que, através da sua aliança com os poderes existentes, negou às outras confissões o direito a visibilidade no espaço público, obrigando os seus templos a esconderem-se atrás de altos muros -- caso da sinagoga de lisboa) em nome da crença ou do desejo da maioria equivale a defender que lá se ponha o símbolo do partido que ganhou as eleições ou do clube de futebol com mais adeptos.


que a inépcia e o imobilismo de décadas não podem permitir que o cumprimento dos preceitos constitucionais seja apelidado de 'violento' e 'inesperado'. que a hierarquia da igreja católica e os seus fiéis escribas, que se comprazem em denunciar atentados contra a liberdade religiosa pelo mundo fora quando é a sua liberdade religiosa minoritária que está sob ataque em países onde a maioria professa outra religião, revelam nestas atitudes que nada aprenderam e nada se mostram dispostos a aprender das mensagens mais universais do seu maior profeta -- a tal mensagem que o crucifixo é suposto tornar presente.


que, por último, não se trata de negar a história mas de aprender com ela -- e que tentar combater uma medida justa e legal como a da retirada de símbolos religiosos dos edifícios públicos com a alegação de que se abriu guerra ao cristianismo e que a seguir vão (porque 'têm de', em nome da coerência, assevera-se) queimar as igrejas, arrasar o natal e abolir os feriados religiosos é pura e simples estultícia (mesmo se, do meu ponto de vista laico, me faz mais sentido celebrar o dia em que a inquisição queimou giordanni bruno que o da nossa sra da conceição, que não faço ideia quem seja).


prontoS. escrevi muito, desculpem, mas também já não escrevia há que tempos (tenho estado muito ocupada a pôr crucifixos nas escolas).

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