little things in between
hoje recebi um livro enviado por alguém que so conheço por sms e uma ou duas conversas telefónicas. perguntei: por que me envia um livro? é verdade que faláramos de livros -- faláramos de pouco mais -- e que tinhamos trocado gostos (roth, mccarthy, mcewan). a resposta foi: porque gostamos de livros e somos poucos (achei essa da irmandade um bocado exagerada, mas pronto).
o livro, de um 'novo americano' (novo para o ofertador do livro, acho eu, e para mim certamente, nunca li nada deste homem já entradote) é de rush. chama-se mating.parece que se passa em áfrica, onde o autor viveu muito tempo (talvez viva ainda), na zona do kalahari, o deserto vermelho.
mating: ora que nome, como dizer, inesperado, quase hilariante (não me perguntem porquê, eu não saberia sequer começar a explicar -- ou por outra saberia mas seria muito maçador).
para a troca quis vender rhys -- e vendi, não sei se com inteiro sucesso --, hardy (o meu favorito, jude the obscure) e, for something completely different (embora talvez não tanto assim), to kill a mocking bird.
à harper lee li-a em agosto de 2006, no brasil (em pacote com o everyman e com o l'amour do stendhal, sim, caraças, uma salada russa). foi tudo que eu esperava e mais. comprei logo meia dúzia para oferecer -- ofereço espasmodicamente livros de que gosto muito, como uma evangélica a impingir bíblias.
escrevi sobre ele no glória fácil, em novembro de 2006.
little things in between
é um bom livro para se ler no início da adolescência. não calhou. mas lê-lo agora, bem longe, bem depois -- tão tão depois -- é como entrar numa máquina do tempo. para quando os verões eram infinitos e os pais invencíveis e sempre justos e sempre ali. quando todos os dias inventávamos novas brincadeiras e faziamos de tudo uma aventura e até o frio e o calor eram uma conversa do mundo connosco. quando estava tudo tudo por estrear.
e depois, quer dizer, antes e durante, há a linguagem. contar como uma criança, pensar como uma criança, é uma arte difícil. lee domina-a sem alardes. to kill a mockingbird é uma história de amor pela infância contada por alguém que, como ruy belo, sabe que o verão era a única estação.
é também uma história do amor de um homem invisível por duas crianças, o amor de um estranho que vela pelo rapaz e a rapariga que vivem na casa ao lado. sem esperar nada em troca, apenas a possibilidade de os ver e de os amar e de, um dia, se for preciso, lhes salvar a vida.
'neighbours bring food with death and flowers with sickness and little things in between. boo was our neighbour. he gave us two soap dolls, a broken watch and chain, a pair of good-luck pennies, and our lives.'
às vezes penso que, ao contrário do que é comum dizer-se, as pessoas sem crianças as vêem como um milagre maior que as que as têm. falta de hábito, talvez, ou uma atenção diferente à gramática da infância, um enternecimento não possessivo com esse milagre fugaz.