bispos 1, estado laico 0
Em Setembro de 2007, rebentou a guerra das capelanias. Nunca se viu tal ira na prelatura católica. Qual aborto, qual casamento de pessoas do mesmo sexo: nada foi capaz de levantar os bispos como um pré-diploma do Ministério da Saúde, então liderado por Correia de Campos, que, segundo eles, "retirava aos doentes o direito à assistência religiosa", era "um ataque aos mais pobres dos pobres" e seria até, asseveravam, "inconstitucional". Porquê? Porque, garantiam, passava a ser obrigatório solicitar a assistência religiosa por escrito e apenas na admissão no hospital, e esta era restringida às horas das visitas. Com base nesta versão, choveram as críticas: o governo jacobino queria acabar com a religião, roubar aos doentes o seu único consolo, negar a extrema-unção aos moribundos. Quando o diploma apareceu nos jornais, porém, as alegações dos bispos provaram ser falsas: os assistentes religiosos podiam ter acesso aos doentes a qualquer hora, desde que autorizados para o efeito (tanto pelo doente como pela unidade de saúde) e a solicitação de assistência religiosa podia ser efectuada a qualquer altura do internamento. As razões de queixa da hierarquia católica eram outras: ao colocar a assistência religiosa de acordo com a lei da liberdade religiosa de 2001, que prevê, de acordo com a Constituição (de 1976!), a igualdade religiosa, o diploma retirava aos ministros católicos o monopólio desse serviço. Os capelães existentes - todos católicos - permaneceriam nos hospitais, como funcionários públicos que são (por via da Concordata salazarista de 1940, extinta pela de 2004), até à reforma, mas não haveria mais contratações; os assistentes religiosos de todas as confissões teriam igual acesso aos pacientes e seriam pagos de acordo com a mesma tabela e critérios em regime de prestação de serviço. Mas o burburinho surtiu efeito: o pré-diploma foi, como disse na altura Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, "metido na gaveta". Dois anos passaram. E eis que em Setembro último, em plena campanha para as legislativas, era publicado um novo regulamento, desta vez sem arrufos nem alarde. À primeira vista, parece ter mudado pouco. A extinção do cargo de capelão mantém-se; o direito a assistência religiosa de qualquer confissão está estatuído, assim como o direito a recusá-la; as unidades de saúde devem ter local específico para essa assistência (sem símbolos religiosos específicos de qualquer confissão) e local de culto misto. Só que, se os pacientes podem requerer a assistência de qualquer confissão, nem todos os assistentes têm direito a remuneração - só os que se encontrem vinculados à unidade "por contrato". E que contrato é este? É "um regime de contrato de trabalho em funções públicas" ou "contrato de prestação de serviços". E o critério? Um assistente por 400 camas - e "respeitando a representatividade de cada confissão religiosa". Tradução: as unidades de saúde vão continuar a contratar assistentes católicos em exclusivo e em permanência e os pacientes de outras confissões poderão continuar a fazer o mesmo que antes: a pedir que lhes chamem a sua gente, que virá de graça e é se quiser. Igualdade religiosa, faz de conta. Quanto à moral da história, é muito boa. Mentira, chantagem e cobiça não só não são pecado como dão lucro. E o governo laico socialista tem dias. adendas: estado laico mas pouco; padres com monopólio na assistência religiosa oficial; sorriem mas nunca baixam a guarda (dossier, dn, outubro de 2005); são exactamente 193 capelães a mais; a horripilante e mentirosa campanha jacobina