31 do Reumático
Todos os dias aprendo coisas novas. Hoje foi o dia de saber que Afonso de Albuquerque morreu há 494 anos. E como soube eu isto? Por alguém que o assinalou, aqui. Uma efeméride? Um pretexto para uma reflexão sobre o personagem, sobre a época, sobre o papel de Portugal no mundo, sobre o que nos une e nos separa da Europa e da Ásia de há 500 anos? Bom, se quiserem chamar-lhe isso. Para mim, tratou-se apenas de ir ao armário tirar uma velharia, dar-lhe polimento e cantar o hino, tudo em sentido, com uma lágrima de emoção patriótica e o coração a bater de fervor por esses tempos em que Portugal foi grande, oh tão grande, e depois desinchou, mirrou e murchou até chegarmos à apagada e vil tristeza, sigh! dos nossos dias. A mim sempre me fez impressão a visão decadentista tão tipicamente portuguesa que tende, de forma tão patética, tão tacanha, tão provinciana, a glorificar um passado com doses maciças de polish e a desdenhar de modo tão cruel, tão impiedoso, tão frio, o presente. Daqui se pode deduzir a forma como encaramos e aguardamos o futuro. Como se houvesse uma fibra, uma raça, que se tivesse perdido algures (noutros tempos culpar-se-ia a miscigenação e o atrofiamento e amolecimento das lusas qualidades viris). Enfim. O mais curioso é que já nessa época este sentimento era comum (basta ler Diogo do Couto para se perceber o que digo). Adiante.
O manifesto patriótico veio, olha a admiração, pela mão do 31 da Armada, sob a pena de Rui Crull Tabosa. "Terríbil", é como começa, relembrando a forma como Camões definiu Albuquerque. Aliás, Camões é evocação comum por aquelas paragens (quiçá como forma de garantir genuinidade 100% lusa, será?), ocasionalmente com resultados interessantes, como reparei uma vez. Ora, e que se diz ali sobre Albuquerque? Informação actualizada, opinião amadurecida, reflexão ponderada, crítica, literária, cronística, sobre o personagem? Bem, bem, que posso eu dizer de um texto que o caracteriza como um "integracionista convicto e percursor de um multiculturalismo sem complexos"? Deduzirei, talvez, que as suas acções destinavam-se, não a vergar os seus inimigos pela força ou a impor um controle férreo da navegação e do comércio pelo terror e pela represália, mas sim a construir uma sociedade multirracial e multicultural, quiçá igualitária, de harmonia entre raças, religiões e culturas? Um Gandhi avant la lettre, talvez? Bem, depois é que não se percebe, porque quando esperava as provas do humanismo albuquerquiano, o post desata a descrever os seus projectos, como a ideia de saquear Meca e chantagear o sultão do Cairo (para obrigar à devolução de "Jerusalém à Cristandade") e de desviar o Nilo. Tudo coisas "integracionistas" e "multiculturais", como é bom de ver. Muito haveria a dizer sobre estes projectos, mas o blogger sempre poderá aceitar as sugestões de leitura ali mais abaixo. Ahhh é verdade, Albuquerque acabou com o "abominável costume hindu" do sati, coisa que os britânicos só se atreveram a fazer passados vários séculos. Aliás, como sabemos, o hinduísmo estava evidentemente cheio de coisas "abomináveis" (a Europa cristã é que estava, nessa altura, cheia de coisas, talvez, "adoráveis", não?); valeu-lhes o bom Albuquerque, certamente por convicção feminista.
Bom. Por esta altura comecei a duvidar do sentido do texto. Não percebi bem como era possível conciliar informação tão díspar. A luz surgiu pouco depois, num comentário da autoria do autor: "pirataria, isso foi o que Albuquerque combateu". Ora bem, nem mais, tudo ficou claro. Os outros eram todos piratas. Entenda-se, os Mappila malabares, os guzerates, os persas, os otomanos, os malaios, a moirama toda. Não eram rivais nem adversários. Sem sequer era gente que há séculos ali vivia. Eram piratas. Porquê? Porque eram inimigos do Terríbil. Fiquei elucidado. Ficou tudo dito.
Depois pensei, que é feito da ideia luso-tropicalista da bondade, brandura e macieza da presença portuguesa além-mar, hein? Gostamos muito de apontar a brutalidade de outras potências europeias e contrastar com exemplos de tolerância, de contemporização e de um certo carácter soft dos portugueses em África, na Ásia e no Brasil. Sobretudo, apreciamos muito invocar a lenda negra dos conquistadores castelhanos no México e no Peru, opor a conquista espanhola ao descobrimento português, Pizarro e Cortés a Cabral e ao Gama. Mas lá no fundo, no fundo, continuamos a roer-nos de invejazinha, não continuamos? Depois acabamos a repescar velhos chavões patrioteiros sobre eventos e personagens da nossa Idade de Ouro. Sobre esses já não há atrocidades a reportar, apenas heroicidades. Confesso que, ao ler o post em causa, me lembrei de Pinheiro Chagas e do modo como domámos o Indostão, ao descrever Portugal como "o leão do Ocidente, estendendo as garras por cima do Atlântico, [que] segurava numa delas, fremente e subjugado, o opulento Indostão, e com a outra domava as convulsões desesperadas da hiena marroquina". Depois, seguiu-se a crónica do Eça n'As Farpas, mas isso é uma outra história.
Na verdade, o génio de Afonso de Albuquerque pode ser medido e avaliado noutros parâmetros que não a enumeração parola de projectos disparatados ou de considerações ocas sobre a forma como "conquistámos Goa, Ormuz e Malaca, fechando quase por completo as portas do Índico à navegação árabe e ao comércio de turcos, genoveses e venezianos". Já agora, alguém que me explique o que eram exactamente "as portas do Índico" para a navegação árabe e, já agora, que raio teriam elas a ver, por exemplo, com Malaca. De caminho gostava também de entender como é que um homem odiado por soldados, marinheiros, fidalgos, mercadores, exceptuando uma meia-dúzia de fiéis, era "um líder nato".
É preciso conhecer os meandros da época, o que estava em jogo e o que significavam as acções do governador para compreender os seus projectos megalómanos, os seus actos, a sua ambição, os ódios que suscitou, e também o seu fim. E aceitar que Albuquerque foi contestado, odiado, sabotado pelos seus compatriotas, tanto na Índia como em Lisboa, e que isso não significava coisa nenhuma senão interesses antagónicos que se degladiavam, entre mercadores privados, fidalgos, corte e rei, cá como lá, visões diferentes do que deveria ser a presença portuguesa na Ásia, projectos empíricos, improvisação, interesses pessoais e de grupo. Foi um génio? Foi. Mas esta genialidade decorreu da sua percepção, precoce, da visão de conjunto do Índico, de que tudo aquilo era uma enorme placa giratória interdependente, e que Portugal, com poucos recursos humanos e materiais, necessitava de um plano estratégico global e integrado, que ultrapassasse a mera perspectiva local ou regional, para conseguir sucesso duradoiro. Sabia que a invencibilidade das naus e da artilharia portuguesa eram um mero efeito-surpresa efémero, e que a reacção não se faria esperar. Portanto, era necessário avançar rapidamente e obter posições-chave, pela persuasão ou pela força, mesmo que para isso fosse preciso passar por cima das ordens régias, dos direitos e privilégios dos seus pares ou dos pruridos da guerra justa. Albuquerque percebeu, também, que a Ásia marítima se auto-sustentava e que os produtos europeus não faziam ali falta nenhuma o que, portanto, levava a que o comércio de Índia em Índia fosse muito mais proveitoso do que o trato pela Rota do Cabo. Portanto, era preciso criar raízes, controlar rotas, obter aliados, fazer emergir um organismo, como se diria hoje, com pés para andar sem estar dependente dos humores de Lisboa ou da frágil, longa e lenta ligação ao reino. De tal maneira era clarividente, que as posições que tomou foram os esteios do futuro Estado da Índia, durante mais de um século.
Ah! Já agora, diga-se que o rei não o traiu nem lhe puxou o tapete. Simplesmente, teve que ceder, porque D. Manuel não era Luís XIV. Pronto. Foi o que me ocorreu dizer a propósito. Quem quiser saber mais, aconselho Luís Filipe Thomaz, Geneviéve Bouchon, Jean Aubin, Sanjay Subrahmanyam ou João Paulo Costa. Isso serve também para o grumete do 31. Isto é, se a carapuça lhe servir, claro. Na minha opinião, fica-lhe a matar.
(Foi um post de desjejum. Uma espécie de prova de vida. Agora recolho-me novamente à concha. Boas Festas e Hasta!)
P.S. Acabo de escrever e a minha casa acabou de abanar. Acabou de ocorrer um terramoto ou algum poltergeist anda aqui a fazer serão?