panos de pó
Há coisas totalmente inexplicáveis que toda a gente parece achar normais. Caso para uma pessoa se sentir uma incompreendida, uma pária, uma exilada do senso comum. Exemplo? Exemplo comezinho, comezinho (aliás, só coisas comezinhas são tão inexplicáveis e ao mesmo tempo tão comummente aceites)? Os panos de pó. Sim, os panos de pó. Não percebe porquê? Eu explico.
O pano de pó é o quê? É um rectângulo (ou um quadrado, vá) de flanela. Serve, como o nome indica, para limpar o pó, e limpa-o precisamente em virtude do material de que é feito: flanela. Posto isto, estando todos de acordo sobre esta verdade essencial do pano de pó, digamos mesmo sobre a natureza ontológica do pano de pó, mesmo que até se possa aventar que um pano de pó poderia limpar igualmente bem o pó caso fosse de outro material que limpasse também bem, falta perceber por que raio todos – todos, nunca vi algum à venda neste país que o não fosse – os panos de pó são cor-de-laranja. Que fique claro: até gosto, e muito, de cor-de-laranja. E acho que se os panos de pó fossem, sei lá, cinzentos ou castanhos eu ia querer panos de pó cor-de-laranja. O problema é que como todos os panos de pó são desta cor eu quero panos de pó cinza, pretos, amarelos, azuis, encarnados. E, sobretudo, não percebo como é que tal coisa nunca ocorreu a quem fabrica panos de pó, a quem decide de que cor eles devem ser, a quem tece flanelas, enfim, a que tem esta responsabilidade.
Este insondável enigma tem muitos gémeos. Alguns, felizmente, já são apenas recordações. Quem é que não se lembra de quando todos os lençóis eram brancos? E as toalhas turcas, que só existiam em branco ou em cores desmaiadas, ditas cor-de-cueca (que, por sua vez, eram como é bom de ver cor de cor-de-cueca também). E os roupões? Só havia roupões de cor de baby-grow de bebé, como só havia baby-grows de bebé rosinha pálido, azulinho pálido, amarelinho pálido e cremezinho – os bebés estavam, por decreto, impedidos de ser fashion. E os panos de cozinha? Os panos de cozinha tinham de ser todos aos quadradinhos, e com desenhinhos. A primeira vez que vi um pano de cozinha liso de cor forte – encarnado – ia desmaiando de felicidade.
Podemos ir por aí fora: o papel higiénico. O papel higiénico era, lembram-se?, sempre branco. Ou amarelinho ou azulinho ou rosinha (para fazer pendant com as cuecas, os baby-grows, os roupões e – ia-me esquecendo – as camisas de noite, que ainda por cima tinham de ter bordados ou coisa parecida) -- agora que penso nisso, tudo o que tinha remotamente a ver com partes pudibundas era de “cores de bebé”. Coisa estranha, até inquietante, esta. Freud explicará? Cá para mim, Freud, coitado, nunca deu por isso, até porque era austríaco e se calhar lá pelas Áustrias os panos de pó são de todas as cores (que sei eu de panos de pó austríacos). Mas esta infantilização forçada, decretada, da intimidade é coisa para reflexão (noutra crónica, que esta está, hèlas, quase a acabar).
Outras charadas cromáticas: por que raio as meias de ginástica disponíveis até há uns anos eram sempre brancas com raquetes ou com riscas encarnadas e azuis? A falta de imaginação e o mau gosto não explicam tudo, caramba. E, noutra ponta do espectro das meias: porque é que as de rede eram sempre pretas? O totalitarismo insinua-se de muitas formas, e as estéticas não são menos normativas que as outras. Servem, aliás, de aviso: da China à URSS, da Alemanha “democrática” aos khmers vermelhos e à Coreia do Norte, a imposição sem apelo de cores e feitios para tudo sinaliza a negação da individualidade, da diferença. É bem possível que a uniformização ditatorial dos panos de pó que há décadas se impõe em todas as casas seja uma das heranças mais renitentes do salazarismo, uma espécie de lembrete paradoxal -- já que aparentemente não damos por ele. Chega. Numa democracia liberal, devemos poder escolher a cor dos nossos panos de pó. E já. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de domingo passado)