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jugular

Puramente mera, ou simplesmente genuína

Na discussão que -- extraordinariamente -- subsiste no pós-referendo sobre a possibilidade de as mulheres poderem decidir, sem terem de submeter as suas razões ao escrutínio de outros, se querem ou não interromper uma gravidez até as 10 semanas, há um conjunto de expressões que, utilizadas para adjectivar a decisão da mulher, traduzem com límpida eloquência a cabeça e o ordenamento do mundo de quem as usa. "Mera" -- utilizada na fórmula "a mera vontade da mulher" -- é provavelmente aquela que mais quer exprimir o desdém que quem recusa à mulher a possibilidade de decidir, a capacidade de decidir "bem", sente pelas mulheres. E a expressão utilizada, por exemplo, pelo juiz do Tribunal Constitucional Mário Torres para designar a vontade da mulher no contexto da decisão abortiva. Colocado à frente de uma qualificação profissional, como "juiz" ou "médico" ou "assistente social", o adjectivo mero exprime a ausencia de qualificação, a vulgaridade, o carácter simples, comum. É isso mesmo que o dicionário da Porto Editora certifica ser o significado da palavra: "simples", "comum", "vulgar". Uma vulgar mulher, portanto, não poderá, no juízo do juiz Mário Torres e dos que pensam como ele, decidir com a sua vulgar capacidade de decisão sobre a sua vulgar gravidez. Não: para o juz Mário Torres e para os que como ele com tanta sobranceria avaliam a vulgar capacidade de decidir (de pensar, portanto) das mulheres vulgares, uma simples mulher para simplesmente decidir sobre a continuação ou não da sua gravidez, sobre a sua própria capacidade para ter e criar um filho, necessita de qualificação externa. De alguém que a ajude a pensar. De alguém que lhe acrescente a capacidade. A mulher precisará então, na formulação mais comum dos objectores da "mera vontade", do concurso de uma comissão, à alemã, composta de "especialistas". Especialistas de quê? Ora, presume-se, de decisões. De vontade. De capacidade.De gravidez. De instinto maternal. De milagres. Fala-se de médicos, de assistentes sociais, de sacerdotes. Tudo gente, naturalmente, mais qualificada que a mulher para pensar sobre a gravidez dela e sobre o que a gravidez dela significa para ela. Para quem assim raciocina, os médicos, os assistentes sociais, os sacerdotes nunca são "meros". Como de resto os juízes. Têm um valor acrescentado: não são a mulher. Não são a protagonista da história. Estão de fora. De certo modo, o dicionário da Porto Editora também dá razão a quem assim pensa. Porque mero também quer dizer "puro". Mais: quer dizer "genuíno". A origem da palavra é aliás essa: do latim "meru", ou puro. Afinal, ao querer insultar as mulheres, quem assim as insulta está, sem se dar conta, a certificar, pelos extraordinários labirintos da língua portuguesa, que é delas a pura capacidade de decidir, a genuína decisão. Delas, das mulheres comuns, vulgares, sem pergaminhos ou especializações outras que não a de existirem, serem donas de si, poderem engravidar e terem por isso o direito e o dever de decidir sobre essa gravidez. Muito meramente, num mero dicionário, perto de si.

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