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limpar a casa, parte 2


Se há tema de texto que incendeie as opiniões, é o do trabalho doméstico contratado – sobretudo, bem entendido, se quem escreve for mulher. Não falha: a primeira vez que me dediquei ao assunto, numa reportagem publicada há mais de 10 anos nesta revista e intitulada “A ditadura das mulheres a dias”, recebi magotes de reacções, por carta, mail e até por telefone. O nível de agressividade de algumas (a mais memorável foi a de alguém identificando-se como empregada doméstica a asseverar serem “todas as patroas umas porcas”) veio confirmar uma das hipóteses do trabalho, a saber, a da existência de um estranho ressentimento, por parte das profissionais – geralmente mulheres – que se dedicam a essa ocupação em relação às mulheres (e apenas às mulheres) que as contratam.

 

Como se, considerando o trabalho doméstico como feminino, todas as empregadas domésticas se considerassem no direito de desconsiderar quem, sendo mulher, opta por não o fazer e pagar por ele – quer por lhe criticarem a “preguiça” e a ausência de “qualidades femininas” relacionadas com o cuidado do lar, quer por, paradoxalmente, se sentirem diminuídas ao serem encarregues de uma ocupação que a dona da casa considera não digna de si. Se o patrão for homem, em contrapartida, não só compreendem perfeitamente que não mexa uma palha em casa como têm uma atitude maternal, até carinhosa, em relação a esse facto, acalentando a ideia de lhe serem indispensáveis. Tudo isto é, obviamente, uma generalização mas este fundo de ressentimento e de visão distorcida está longe de se circunscrever às profissionais do ramo. Quando um dia, num texto de blogue, assumi ter uma empregada doméstica, fui fustigada fervorosamente por gente que considerava impensável que uma mulher, para mais identificando-se como de esquerda, pagasse a alguém para lhe limpar a casa. Como se contratar esse serviço equivalesse a selvática exploração e submissão a trabalho degradante, levando a concluir que os que assim pensam ou vivem em pocilgas ou têm um caso de paixão com esfregonas. A não ser, claro, que – mas isso é impossível, certo? -- haja quem lá em casa o desempenhe de graça.

 

Parece então que, em teoria geral, o trabalho doméstico é degradante se for pago mas digno se for feito de graça. Este tipo de racionalidade prolonga-se nas noções sobre o estatuto salarial dos trabalhadores domésticos e sobre quem os contrata. Numa crónica recente, discorri sobre o facto de nos países mais ricos da Europa praticamente ninguém contratar trabalho doméstico, ao contrário do que se passa em Portugal, em que a maioria da classe média o faz. Quando coloquei o texto no blogue onde participo (jugular.blogs.sapo.pt), vieram os destemperos do costume. Se uns torciam as mãos pela miséria auferida por quem faz este tipo de serviço, outros garantiam ser impossível à maioria dos portugueses contratá-lo por demasiado caro. Houve mesmo quem objectasse (juro!) à existência de mulheres a dias por considerar “não ser a vocação de alguém limpar casas”, depreendendo-se que se alguém procurar trabalho desse tipo devemos manter a pessoa desempregada e encorajá-la a seguir a sua vocação, qualquer ou nenhuma. Pouco interessa que sem formação, diplomas ou supervisão directa se ganhe no trabalho doméstico entre cinco e sete euros à hora, permitindo auferir, em turnos de oito horas cinco dias por semana, de 800 a 1120 euros/mês com direito legal a subsídio de férias e de Natal; pouco interessa que a generalidade das casas “classe média” seja habitada por mais que um adulto empregado e que a soma dos dois permita obviamente contratar umas horas de trabalho doméstico por semana ou mês. Pouco importa que as “tradicionais” fadas do lar “por vocação” – as mulheres, quem havia de ser? – tenham entrado em força no mercado de trabalho (incluindo do trabalho doméstico) deixando de ter tempo e gosto para trazer as suas casitas num brinco. Pouco importa: falar de “mulheres a dias” com descontracção e naturalidade é proibido e dá multa. Bom mesmo é fazer de conta que não existem. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 20 de dezembro)

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