Que pena, Vasco
Como muita gente, já tive um crush pelo Vasco Pulido Valente. É fácil ter um crush pelo VPV. Escreve bem, naquelas frases compassadas, com a pontuação toda nos sítios certos, o alinhamento das palavras num ritmo nonchalant, como se não requeresse esforço nenhum escrever assim. É esse o tom dele: o de quem escreve como se não se importasse, como se não importasse. O tom maçado de quem se dá à maçada de escrever sobre coisas maçadoras. Coisas que não merecem o esforço de pegar numa caneta ou de carregar numa tecla, mas vá: é preciso fazer alguma coisa. Quando tive o tal crush, há coisa de quase vinte anos, o tom dele já era esse, exactamente esse. A maçada que é, foi e será sempre Portugal e o desinteressantes, incapazes e estúpidos que são, foram e serão sempre os portugueses os temas recorrentes. Havia outros, às vezes -- no livro Às avessas, editado pela Assírio e Alvim com textos da Kapa e do Independente, escreveu sobre ele, o ficar velho, uma doença súbita. Há textos magníficos de VPV, e esses estão entre os melhores. A maioria, no entanto era já o costume: dizer mal de nós. Dizer que vamos de mal para pior, que nunca fazemos nada certo -- e se fazemos é por acaso -- e que mais vale estarmos quietos. É um tom e uma teoria com um certo capital de fascínio para uma miúda de vinte e tal anos, com toda a arrogância e a soberba dos vinte e tal anos, toda a ignorância dos vinte e tal anos e todo o desprezo pelos outros, principalmente pelos que se dedicam a certas actividades particularmente desprezíveis para quem tem vinte e tal anos, como a política, que os vinte e tal anos permitem. Passaram-me -- hélas -- os vinte e tal anos e passou-me o crush por VPV. Aliás, creio que me passou antes de fazer trinta anos, quando, em 1991, houve na ainda URSS uma espécie de arremedo de golpe dos comunistas ortodoxos contra Gorbachev e VPV festejou a inevitabilidade, tipo 'a URSS é irreformável, não democratizável, estejam mas é quietos'. Acho que foi aí que me dei pela primeira vez conta do pânico absurdo, quase infantil, que VPV tem da mudança. Pode ser uma coisa interessante, trágica, uma espécie de recusa da esperança, mas não deixa de ser um cansaço. Foi o cansaço, mais do que as contradições -- aquela coisa de ser deputado do PSD de Fernando Nogueira e ainda por cima ir para o parlamento fazer ares de enjoado, por exemplo -- que me deu cabo do crush. Tenho pena, porém. Tanta pena que ainda o leio. Com intermitências, para desenjoar de tanto apocalipse e de tanto enjoo com o mundo em geral e Portugal em particular, de tanta aspa em revolução, democracia, trabalhadores e intelectuais, de tanto decreto de inutilidade, de tanta vez ler "nunca esqueceram nada e nunca aprenderam nada" mais as várias conjugações do verbo "pastorear". E, sobretudo, claro, de tanta presunção de superioridade. Não me entendam mal: eu gosto de gente arrogante. Com a mania. Gosto da soberba. Não consigo é perceber o facilitismo da pose e esse insistente pânico da mudança -- e VPV hoje em dia é sobretudo isso. De tal modo que, no domingo de Páscoa, lhe deu para escrever, imagine-se, sobre "a trivialidade em que se tornou a vida" porque as pessoas usam os feriados da Páscoa para viajar em vez de, supõe-se, comer peixe e pensar na ressureição de Cristo. Não que VPV seja cristão "e muito menos católico", adverte-nos, nem que o "surpreenda ou aflija esta indiferença pelo calendário cristão". Mas entristece-o. Aliás, vai por aí fora: entristece-o também, pelos vistos, que o "povo" (aspas minhas, também posso fazer as minhas blagues) use do mesmo entusiasmo com as festas seculares, como o 5 de Outubro ou o 25 de Abril ou o 10 de Junho. VPV quer marchas e majorettes e confetti e a malta toda na rua de bandeira, portanto? Mas se sabemos o que VPV pensa dessas manifestações populares. Ainda nos lembramos do que escreveu sobre as marchas de Lisboa, por exemplo. E é fácil imaginar o que VPV escreveria se o "povo" se lembrasse de festejar em peso o 25 de Abril, a tal revolução que não houve (segundo VPV) ou o 5 de Outubro. Ou de vir todo para a rua fazer encenações da crucificação, a la Filipinas, em vez de a trabalhar para o bronze em Punta Cana. Não, não é possível acertar. Com VPV, estamos sempre mal. Nunca chegaremos a sofisticação, nunca seremos cosmopolitas. Saloios para sempre, miseráveis forever, por mais viagens que façamos, por mais que nos afastemos do terço e do jugo dos caciques. O golpe de misericórdia está porém para vir: nem sequer temos uma época de teatro nem uma época de música, lamenta-se VPV, que foi, há muito muito tempo, secretário de Estado da Cultura ou coisa que o valha (não tenho idade para me lembrar bem disso, sorry) e que defende que a cultura deve sobreviver sem subsídios do Estado. Nem sequer, continua, direito ao que mais dói, temos futebol de jeito. Não festejamos verdadeiramente nada, conclui ele, o homem que há décadas garante que não há nada na nossa história nem nos nossos feitos que valha a pena festejar, nada na nossa cultura que mereça loas, nada que suceda que não fosse melhor não ter sucedido. Afinal, descobriu VPV, os portugueses tornaram-se terrivelmente parecidos com ele. E ele não acha graça nenhuma. Acha uma tristeza. Uma maçada. Percebo-o muito bem.