Warning: Here be spoilers
Raras vezes um filme me suscitou tantas expectativas, sobretudo depois de ler a crítica de Roger Ebert, o decano do Chicago Sun-Times que compara o filme à Guerra das Estrelas e ao Senhor dos Anéis. Enquanto assistia, a minha reacção foi ambivalente. Acabei por guardar na memória o que me agradou e por exorcizar a frustração do que me desagradou sob a forma de um texto. Este mesmo, que aqui o vosso criado agora serve em ocasião imprópria e a despropósito, em vez de votos de um feliz 2010. No fundo, acaba por ser um mero pretexto para escapar aos preceitos desta coisa de passagem-de-ano, que sempre considerei o mais puro exercício de artificialidade sem graça. Ainda por cima, os pobres de espírito decidiram, e reincidiram, que se trata de uma "mudança de década", o que é falso e funciona somente como um modo de vender "balanços" acerca de um conjunto de 10 anos, transformados em "bloco" (como os 80's ou os 90's) uniforme e distinto do antes e do depois. Nunca um zero moldou de forma tão persistente a percepção da realidade e do passado. Mas isso são outras histórias.
De que filme falo? Do Avatar.
Vamos à parte boa. Os efeitos especiais são de cortar a respiração, não só o 3-D mas, e principalmente, o CGI. Os efeitos de cor, as texturas, o tratamento de pormenor são absolutamente espantosos, mereceram cada cêntimo (e foram muitos) gasto. E pronto, acabou a parte boa. Vale o filme? Não sei. Agora vem a outra. E a outra é, apenas, o argumento. Uma pobreza franciscana, um chorrilho de banalidades previsíveis, uma tristeza que mete dó. Não só pela estória, mas sobretudo pelo modo como frustra as expectativas que vai criando. Isto até meio. Ao intervalo já se sabe tudo, já se adivinha o resto.
O início é promissor: os humanos num planeta recém-alcançado, rico num minério cobiçadíssimo e valiosíssimo (o paralelo com Dune aguçou-me o interesse). A atmosfera é irrespirável, o ambiente hostil. Há uns "indígenas" irredutíveis e avessos aos avanços dos humanos. Percebe-se que as tentativas anteriores de contacto falharam, é adiantado que tudo o que a civilização humana lhes ofereceu fora recusado. Andam por lá uns cientistas, misto de antropólogos e de químicos. Aqui começam as bizarrias: não se percebe bem o estatuto da gente que ali paira. Há Marines e cientistas e, ainda, o que parece ser o CEO da companhia que quer explorar aquilo. Mas não há dados sobre estatuto oficial, sobre o mandato, sobre o poder, sobre diplomacia. Cientistas com missão diplomática? Parece que tudo não passa de uma concessão a uma empresa poderosa e sequiosa. O mote é simples: é preciso extrair o tal minério, é preciso conquistar a confiança dos nativos e acordar com eles um entendimento para que todos fiquem felizes. Nesta altura esfreguei as mãos, porque o cenário prometia. O engenho dos avatares era um bom prenúncio. Pouco depois vinha o primeiro arrepio: Lá vinha a filha do chefe, a mãe que era também a xamã da tribo. Nem faltava o guerreiro de sangue a ferver, corajoso mas imprudente, que no fim se reconcilia com os heróis da estória. Aquilo cheirava-me cada vez mais a uma mistura de Pocahontas com Danças com Lobos. Os nativos eram, definitivamente, os bonzinhos, os humanos, os mauzões. À medida que a coisa avançava, o arrepio passou a decepção e, depois, a bocejo. Não dormi, os incríveis efeitos especiais não deixaram. Felizmente?
Tudo aquilo tem muito pouco de ficção científica, não passa de uma imensa pastelada com laivos dejá vu de historicidade do remorso, ou complexo de culpa do colonizador. Não um qualquer. Não um espanhol ou português, ou britânico. Não é um filme europeu. É americano. Tirem os Na'vi (assim se chamam os nativos) e metam os Sioux, afastem o Quaritch (um coronel mau como as cobras) e espetem com o Gen. Custer e têm metade da história. Mas o mais entediante é o habitualíssimo mambo-jambo, pintalgado de kitsch q.b., sobre a espiritualidade dos nativos, que vivem em comunhão com o planeta, que têm uma divindade que é a força viva daquele mundo, fértil, fecunda, feliz, plena, elevada, harmoniosa. Um Éden ecológico. No final, até as feras lutam contra os malandros dos humanos, são feras predadoras, temíveis, mas nada burras. Os humanos não. Só lhes falta cuspir para o chão e mijar nas árvores. E, sei lá, cagar tudo com lixo, pesticidas ou MacDonald's. É que nem isso, é tudo corrido à bomba.
Na verdade, eu esperava apenas um contexto um bocadinho menos básico, um exercício um pouco mais elaborado. Mesmo o evidente paralelo com a colonização do Novo Mundo, que se prestava a inúmeros matizes, a imensas tonalidades, é reduzido a um esquema dual, previsível, redutor, simplista. E preguiçoso. É muito fácil pintar os bons e os maus, confessar que somos/ fomos nós os maus. Mas no fundo, o complexo de superioridade sobre o indígena continua lá. Os Na'vi não têm História, nem tecnologia, nem complexidade social, nem Estado, nem escrita, nem nada do que chamamos de civilização. Vivem num estado de pureza original, como os índios da Carta de Pero Vaz de Caminha. Puros e bons. A diferença é que há séculos a pulsão era de salvar-lhes as almas, depois foi a de civilizá-los, agora é a de de deixá-los em paz, na sua pureza verdadeira.
O filme acaba com a vitória dos bons e a explulsão dos humanos. Os Na'vi não os cozeram num caldeirão, nem os esquartejaram ou torturaram. Embarcaram-nos nas naves, de volta ao seu mundo "sem verde", como é dito a certa altura. Aqui percebi que a inteligência dos Na'vi era, afinal, bem pequena: qualquer indígena com dois dedos de testa perceberia que o minério continuava ali, e que os humanos regressariam, mais tarde ou mais cedo, calejados e dispostos a não cometer os mesmos erros. Mas com 163 minutos de novela, enough is enough.
P.S. - Era para escrever um post sobre o 10º aniversário da retirada de Portugal de Macau. Não sobre o fim de Macau, mas sobre o seu nascimento. Mas como um blog é um espaço de opinião e não de pseudo-lições de História, quedei-me por aqui.