Lei 16/2007 e objecção de consciência "em consciência"
Texto de Ana Matos Pires Numa definição simples, a objecção de consciência é uma posição subjectiva que determina o não-cumprimento de obrigações e a não-prática de actos legalmente previstos, por convicções próprias do sujeito, estando este incumprimento isento de quaisquer sanções. A Constituição da República Portuguesa é clara e assume a liberdade de consciência como um direito fundamental. No seu artigo 41º não só prevê esta liberdade, como consagra o direito à objecção de consciência. Também o Direito Internacional dispõe sobre esta matéria. Na legislação ordinária nacional o direito à objecção de consciência é concretizado face ao serviço militar, à inseminação artificial e ao aborto, sendo também referido por códigos particulares de algumas profissões, nomeadamente médicos e enfermeiros A discussão desta temática no seio da classe médica não é nova. Recordo, por exemplo, a reunião Objecção de Consciência na Prática Médica, organizada pela Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (OM), em Coimbra, a 4 de Novembro de 2004, cujo objectivo geral foi debater as condições do exercício deste direito. Referiu na altura António Porto, consultor jurídico da Secção Regional do Centro da OM, que a Constituição "garante o exercício do direito à objecção de consciência, mas exige que exista uma lei que venha concretizar como ele será exercido". (…) "Acresce que o Código Deontológico da OM, que refere este direito, não constitui lei, sendo portanto discutível se poderá ser a concretização legal imposta pela Constituição" e "também não delimita o âmbito de aplicação ou a forma do exercício da objecção de consciência". O que implica que "se face à lei não pode ser vedado ao médico o direito ao exercício da objecção de consciência, existe um vazio legal quase absoluto sobre qual a forma de exercício deste direito". Este é um dos pontos fulcrais: ao contrário do que se passa em relação ao serviço militar, as disposições regulamentares para as outras duas situações referidas são quase inexistentes. "Apesar de existirem em Portugal clínicos que, de forma militante e organizada, emprestam à sua objecção contornos que se aproximam da dissidência civil, não é essa, de forma alguma, a situação dominante", escreve Miguel Oliveira da Silva no livro Sete Teses sobre o Aborto. Parece-me a mim que tem razão, e digo parece-me porque, em rigor, o número de objectores de consciência é desconhecido. Até aqui, o exercício deste direito era feito caso a caso e não existia uma "contabilidade organizada", digamos assim. As questões relativas à objecção de consciência já se colocavam com a anterior lei. A objecção de consciência faz-se em relação aos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez, como é assinalado no número1 do artigo 6º da Lei nº 16/2007, e não ao facto dela ser determinada por indicação médica ou por opção da mulher. Ou estou enganada? O que mudou então, neste particular, com a nova lei do aborto? As diferenças, a meu ver facilitadoras, são os números 3 e 4 do referido artigo 6º, que dizem, respectivamente, "Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objector preste serviço" e "A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao director de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez". Deixando de existir a necessidade de avaliar o direito à objecção de consciência caso a caso, como acontecia anteriormente, e estando definido na lei que a opção por este estatuto tem que ser previamente expressa por escrito, o "efeito" do exercício deste direito pelos clínicos, em termos de "mão de obra" disponível, pode ser tido em conta na organização dos serviços. Em relação à publicitação da condição de objector e às implicações da insuficiência de resposta por parte de alguns centros, volto a Miguel Oliveira da Silva, no mesmo livro: "Alguns poderão argumentar que se trata de uma questão do foro íntimo e que, como tal, ninguém tem que revelar publicamente as suas posições sobre o tema. Mas o ponto é que, aceitando trabalhar num SNS que despenalize a interrupção de gravidez e que reconheça o direito à objecção de consciência, os objectores não podem em rigor transformar o direito da grávida num quase não direito ou, o que não sendo o mesmo é de qualquer forma um modo extremo de dissidência, obrigar a tutela à privatização da despenalização da interrupção de gravidez". A este propósito relembro o artigo 5º da Portaria 189/98, de 21 de Março, ainda em vigor: "Os estabelecimentos em que a existência de objectores de consciência impossibilite a realização da interrupção da gravidez nos termos e prazos legais devem desde já providenciar pela garantia da sua realização, adoptando as adequadas formas de cooperação com outros estabelecimentos de saúde ou com profissionais de saúde legalmente habilitados, assumindo os encargos daí resultantes". Daqui resultam duas conclusões que me parecem relevantes, (1) a responsabilidade de resolução da insuficiência, e os respectivos encargos, são atribuídos ao serviço que não consegue dar resposta e (2) não é líquido que tenha obrigatoriamente que ser um serviço privado a colmatar essa incapacidade de resposta. Por último, quero relembrar o carácter individual deste estatuto, o que impossibilita a sua aplicação a um serviço ou qualquer outra estrutura plural. Para que não restem dúvidas: um serviço que integre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não pode, enquanto tal, pedir o estatuto de objector de consciência. Usando as palavras de Vital Moreira "ou os médicos banalizam a objecção de consciência, (…) pondo em causa o direito das mulheres interessadas a obterem uma IVG nos casos previstos na lei", ou não me parecem existir razões para que o direito à objecção de consciência "verdadeira" crie dificuldades acrescidas. É que relativamente ao estatuto de objector de consciência, partilho da posição defendida em 2004 por Daniel Serrão "só deve ser utilizado por verdadeiros motivos de consciência individual" e "quem o invoca tem que cumprir duas exigências, a integridade e a coerência".