Testemunho
Cumpre-se hoje mais uma expectativa do Portugal de Abril, do Portugal livre e democrático, rumo à plena igualdade de direitos entre todos os cidadãos, maiorias e minorias, homens e mulheres, sem distinção de sexo, raça, credo ou orientação sexual. Vai ser dado mais um passo, no Portugal onde nasci e onde sempre vivi e espero viver, com mazelas, desigualdades, injustiças, pobreza e o que mais quiserem acrescentar, que será seguramente acertado. Mas que dá lições de civilidade, de tolerância e de respeito pelos direitos humanos num mundo onde a regra continua a ser o oposto. E este é o Portugal de Direito a que me orgulho de pertencer, com a sua cultura e a sua História (sim, esta também).
Dirão uns que é um pormenor, uma nota de rodapé; que é uma perda de tempo em tempos difíceis, uma questão empolada pelos media e pelo reputado lobby gay, areia para os olhos atirada para desviar as atenções do défice das contas públicas, do orçamento para 2010, dos níveis críticos de desemprego, das preocupantes tensões sociais. Digo eu nem que sim, nem que não, mas apenas que não importa. Ou que talvez importe, sim, precisamente por isso, porque houve a coragem de avançar sem esperar mais, apesar do que fica dito atrás. Porque a igualdade de direitos não deve ter agenda nem calendário nem timing.
Outros dirão que é fracturante, adjectivo que cai agora no goto de tantos, porque mexe com uma instituição secular, com um pilar da sociedade, colocando riscos, perigos, tensões, ameaças. Isto, eu não consigo entender. Apenas mais um espantalho, mais um papão no escuro, mais um esqueleto no sótão, concluo. Porque ninguém me conseguiu explicar em que medida, pequena ou minúscula que seja, o casamento de outros irá afectar o meu ou o dos que me são queridos, a minha família, os meus amigos, o meu círculo de conhecimentos, o meu bairro, a minha região. Se duas pessoas se amam e desejam casar-se, só entendo a recusa legal e instituída como o mais puro egoísmo social, a maior inveja pessoal, o mais entranhado preconceito ideológico. Porque é de preconceito acumulado e sedimentado de séculos de intolerância homofóbica que falo e de que se trata, e que não irá desaparecer tão depressa nem tão cedo. Mas para lá caminhamos, em pequenos passos. Mais um. Talvez muitos não se apercebam, por distracção, por mesquinhez ou por ignorância, da sua importância, do seu significado e do enorme contraste com o que se passava ainda há poucas décadas, no que diz respeito aos valores da liberdade e da igualdade. E da fraternidade, já agora, também, mas sobretudo da inclusão. Um pequeno passo que hoje suscita paixões mas passará rapidamente à categoria de banalidade. Daqui a pouco tempo ninguém se lembrará que a união civil entre pessoas do mesmo sexo não era permitida. Daqui a mais algum tempo, algumas pessoas recordar-se-ão da celeuma que a questão levantou. Daqui a muito tempo, outras lerão com incredulidade e com um sorriso irónico as prefecias apocalípticas que, a certo momento, pessoas educadas, inteligentes ilustradas teceram acerca de algo tão normal.
Eu relembro que falamos do casamento civil num estado laico. Não compreendo, portanto, a sanha demolidora que se abateu sobre esta questão por parte de quem entende como válido apenas o casamento religioso. Um homem e uma mulher casados apenas pelo registo civil não vivem, segundo o cânone católico, em pecado, numa união não abençoada por Deus nem reconhecida pela Sua Igreja? E dois homens ou duas mulheres não cometem a abominação de Sodoma? Que importa, então, que estejam ou não casados civilmente? São duas dimensões distintas que alguns tentam confundir porque o cerne da questão não está aí. Está, apenas, na não aceitação da homossexualidade, da sua classificação como "anormal", "contra-natura" ou "perversão". Já agora, alguém que me cite a respectiva passagem de qualquer um dos Evangelhos, em vez de me invocarem citações inconfessadas do Levítico. Eu poderia contrapor em sentido contrário, relembrando o episódio da adúltera, do centurião, do ladrão crucificado ou do leproso, e rematar com o "bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos".
E aos arautos da desgraça que anunciam a destruição da família, digo que os ponteiros dos relógios, tanto quanto me é permitido constatar, continuam a rodar no mesmo sentido e que a família de que falam já não existe ou está em rápida mutação, modificada pela Revolução Industrial, pela emancipação feminina, pela educação generalizada, pela pílula contraceptiva, pela legalização do divórcio e por tantos outros factores. Por muito que isto custe ao João César das Neves e seus émulos. E que o tempo em que existia essa idílica "família ideal" era também o tempo em que a sociedade se segmentava pela desigualdade perante a lei, pelos privilégios de classe, pela barbárie penal, pelo monolitismo ideológico e religioso, a época em que suspeitas de ateísmo, de homossexualidade, de feitiçaria, de judaísmo ou de qualquer dissonância com o padrão vigente eram terríveis anátemas que aterrorizavam comunidades inteiras, que promoviam e cristalizavam a delação, o medo, a desconfiança, a intolerância e o preconceito. A mesma intolerância e o mesmo preconceito que teimam em persistir, diluídos e em farrapos, ainda hoje. Esses dias acabaram. Porque o tempo passou e a sociedade portuguesa sofreu uma evolução sem retorno. E como sou optimista, creio firmemente que, mais do que uma evolução, se trata de um progresso. O passo que será dado hoje é, inequivocamente, nesse sentido.