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jugular

objecções, abjecções, pavlovices e parvoíces

Não é uma surpresa, claro, mas era escusado haver coisas tão previsíveis. A propósito de um texto que a médica Ana Matos Pires publicou aqui há uma semana -- e, nomeadamente, a propósito de uma citação retirada do livro Sete Teses sobre o Aborto, do médico Miguel Oliveira da Silva -- e de um texto de opinião que publiquei no DN de sexta, arreganhou-se, na habitual babosa pavlovice, a sanha de uma parte da blogosfera: ai Jesus que as 'abortistas' querem acabar com a objecção de consciência. Ai que querem obrigar os médicos objectores a fazer abortos -- para um desses comediantes, eu, a 'estalinista', quereria até apontar uma pistola à cabeça dos médicos para tal efeito. Não faço ideia de qual o tipo de alucinogénios que esta gente consome, mas deve ser coisa forte. De tal maneira forte que os leva a, invariavelmente, ler no que está escrito por aqueles -- neste caso, aquelas -- que consideram inimigos aquilo que lá não está, usando essa, digamos, 'interpretação' para elaborar os mais extraordinários e risíveis processos de intenções, à mistura com os descabelados e repetitivos insultos do costume. O mais curioso é que estes alucinogénios parecem impedir as criaturas de se lembrarem, por exemplo, do que disseram há meia dúzia de meses, durante a campanha do referendo. Nessa altura, muito se leu e ouviu, da parte dos que agora embandeiram em arco com a objecção de consciência de parte considerável dos médicos portugueses, que não era preciso mudar a lei, e portanto votar sim, porque a lei existente era óptima, só tinha de ser 'bem aplicada'. Ser 'bem aplicada' seria até, e muitos usaram esse exemplo, aplicá-la 'à espanhola'. Houve até quem asseverasse que de nada servia mudar a lei porque o grande problema era a resistência da generalidade dos médicos do SNS a fazer abortos e que portanto não iria haver condições para a pôr em prática. O problema da aplicação da lei anterior, note-se, era assumido por quase toda a gente que lutava contra a mudança da lei, já que a maioria dizia aceitar como boa -- até como óptima -- a lei existente. Em 2004, a maioria PSD/CDS aprovou uma resolução no parlamento em que, entre outras coisas, exigia ao ministério da saúde que apresentasse periodicamente contas sobre a aplicação da lei e que criasse meios para que esta fosse convenientemente aplicada procedendo, se necessário, à elaboração de protocolos com entidades privadas para suprir deficiências do sector público na resposta aos pedidos das mulheres. Leonor Beleza, então deputada, declarou em várias entrevistas ser 'o conservadorismo dos médicos' o principal óbice à cabal aplicação da lei. O facto de haver uma enorme disparidade de critérios de hospital para hospital e até de médico do SNS para médico do SNS quanto à forma como os pedidos de aborto eram avaliados e ao tipo de afecções ou situações que implicavam uma resposta positiva foi considerado, por várias vezes, inaceitável e uma violação clara do princípio constitucional da igualdade (a propósito, e porque parece que é preciso fazer este tipo de esclarecimento, quando escrevi no DN estar em causa um direito fundamental na hipótese de não haver nos Açores um único hospital público onde as residentes possam dirigir-se para solicitar uma interrupção de gravidez à luz da legislação existente -- a de 2007 e a de 1984/1997 --, estava obviamente a referir-me ao direito à igualdade. Direitos fundamentais são, para quem não saiba, direitos constitucionais. E o 'direito a abortar' não faz, obviamente, parte desses direitos. Desculpem repetir-me, mas a LSD faz mesmo muito mal). A título de exemplo dessa disparidade de critérios, a trisomia 21 (mongolismo, em linguagem popular) era, de acordo com dados relativos a uma reunião de 2003 das comissões de avaliação de interrupção da gravidez de todos os hospitais do país, aceite como indicação para aborto legal por 97% das ditas comissões. Havia portanto 3% que a não aceitavam jamais. A disparidade aumentava em relação à acondroplasia (feto anão), à ausência de membros e em relação a muitíssimas outras malformações. Isto significa, obviamente, que a lei não era -- e continuará a não ser -- aplicada de modo uniforme no território nacional, podendo a mesma grávida, com o mesmo problema diagnosticado, ver o seu pedido aceite num hospital e recusado noutro. Num trabalho jornalístico elaborado para o DN, em 2006, sobre a aplicação da lei, tentei saber qual o número de abortos legais efectuados nos Açores e na Madeira, já que as estatísticas de saúde das regiões autónomas não estão agregadas às estatísticas da Direcção Geral de Saúde, a que tinha conseguido ter acesso. Em primeiro lugar foi-me dito que nos Açores e Madeira não havia números sobre os abortos legais, depois que havia muitas mulheres que eram encaminhadas para o continente para esse efeito. Isto significa, obviamente, que o problema de desigualdade no acesso aos cuidados de saúde que a objecção generalizada de consciência dos médicos dos Açores, a confirmar-se, veio agora colocar com transparência por via da necessidade de registo da dita objecção por via da lei 16 de 2007, já se colocava antes, na vigência da lei de 1984. O registo dos objectores, que deveria ter sido feito há muito, veio apenas tornar indesmentível aquilo de que já se suspeitava. A solução para este problema -- porque se trata de um problema e por um motivo muito simples, as leis são para cumprir (embora muita gente tão defensora da legalidade e ordem democráticas prefira, neste quesito, fazer apelo mais ou menos envergonhado à desobediência civil) -- não é decerto fácil e não passa, decerto, por obrigar objectores de consciência a fazer abortos. Tanto no meu texto como no texto da Ana Matos Pires, frisava-se ser a objecção de consciência um direito constitucionalmente consagrado, algo que parece ter passado despercebido a toda a gente que de imediato nos acusou de querer 'atacá-la' ou mesmo acabar com ela. Parece-me, e foi isso que defendi no texto publicado no DN, que só há uma saída: assegurar que em todos os hospitais com serviço de obstetrícia há condições para cumprir a lei -- a agora aprovada e a anterior. Para isso, é necessário certificar que existe um número suficiente de médicos não objectores. E num caso como o dos Açores, essa necessidade parece-me ainda mais premente, já que os custos (e não existem apenas custos económicos, como é evidente) de uma deslocação a um estabelecimento hospitalar em condições de cumprir a lei são muito maiores que os que ocorrem noutras zonas do território portugues. É para tal necessária coragem, decerto. Antes de mais, política. Não sei se existirá e se não vamos assistir a mais um episódio lamentável deste folhetim que é a história da interrupção da gravidez em Portugal, com o governo regional dos Açores (ainda está para se ver o que ocorrerá na Madeira) a custear as viagens e a estada, fora da região autónoma, das mulheres que queiram abortar, para fazer de conta que não há questão nenhuma. Quanto aos idiotas -- desculpem lá, mas quem me chama estalinista não deve estar à espera de boa educação -- que insistem em apregoar a sua desonestidade na interpretação das posições dos outros ao serviço de uma mui particular visão 'justiceira', gostava de lhes lembrar apenas uma coisa: o 'parecer' da Ordem dos Médicos que muitos de vocês andaram a brandir como trunfo durante a discussão do aborto é -- nunca foi outra coisa -- uma entrevista feita por mim, por escrito, em Setembro de 2004, ao Colégio da Especialidade de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem. Uma entrevista em que, em sete perguntas, tentava obter a posição oficial da Ordem sobre a interpretação da lei de 1984 no que respeita a critérios de aborto legal quando está em causa a saúde física e psíquica da mulher. Fi-lo com um objectivo apenas: clarificar a situação. Porque gosto de situações claras e porque a ninguém, em vinte anos de vigência da lei e de esgrimir de argumentos, ocorrera fazer essa coisa tão simples -- perguntar a quem representa os médicos obstetras qual a forma que considera correcta de aplicar a lei. Se há coisa que verdadeiramente me enoja é a desonestidade renitente e a sistemática má fé na interpretação das posições dos outros e na proclamação de 'verdades'. Escrevam o que quiserem, o país é livre (por mais que agora se queira fazer crer que voltou a ditadura). Mas não reescrevam o que eu escrevo. Esse é, exactamente, o fulcro do estalinismo, como o de todos os totalitarismos: anular o que o outro é, faz e diz, inventando-lhe uma história à medida das necessidades da ideologia e do 'bem'. Se não se importam, essa é uma abjecção a que eu objecto. Em tranquilíssima consciência.

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