Quando o avião cai
“Cultura é não gritar quando o avião cai”. A frase é de Arturo Perez-Reverte, numa entrevista magnífica, magnificamente conduzida por Isabel Lucas, no DN. A entrevista veio a propósito do último livro de Perez-Reverte, O Pintor de Batalhas. É a história de um repórter fotográfico de guerra que deixou a profissão e se dedica a pintar um fresco onde convoca as assombrações coleccionadas em anos de viagem ao coração das trevas. Reverte, que foi repórter de guerra, faz do livro suporte para uma teoria da verdade. Ou, melhor, da aproximação à verdade (da verdade, a existir, só são possíveis aproximações). A personagem de Reverte descobriu que é na apropriação do que viu e sentiu, na mediatização distanciada, efabulada e ficcionada que melhor transmite a “sua” verdade. Que se comunica melhor, que se chega mais fundo através da narrativa pessoal – voluntária, consciente e elaborada, ostensivamente pessoal como o não era o olhar do repórter fotográfico. Há, é claro, sempre narrativa em todo o olhar e em toda a encenação desse olhar – numa fotografia que nada mais faz, aparentemente, que ”mostrar” o que lá está, como numa notícia que nada mais pretende, na aparência, que verter “os factos”. Mas a pretensão de que aquilo é, na sua aparente secura e crueza, tal qual “a verdade” da coisa funciona como uma espécie de cegueira. A ideia de que aquilo a que o jornalista e escritor sueco Stig Dagerman deu o nome de “coração do mundo” só se alcança e comunica através disso a que poderemos chamar a “alma” de quem narra não é afinal nada de novo. A arte, e a nossa necessidade da arte, mais não é que a constatação desse facto. Na literatura, nas artes plásticas, na música está toda a história das ideias humanas, toda a história de todas as histórias humanas. “Temos a arte para não morrer de verdade”, escreveu Friedrich Nietzsche. A frase tem duas chaves de leitura, talvez criadas (não sei alemão para poder clarificar a dúvida) por uma tradução deficiente: a ideia da imortalidade que a arte permite e a ideia de que a arte é a única coisa que nos permite reconciliarmo-nos com a verdade, viver com ela, suportá-la. Prefiro a segunda interpretação, decerto bem mais nietzschiana, e que tão bem comunica com a frase de Perez-Reverte. Não sei se aquilo que nos permite não gritar quando o avião cai, essa espécie de estoicismo que sustém a capacidade de pensar quando o pânico e o medo parecem inelutáveis, se chama cultura. Há, diria, uma tristeza fundamental nessa capacidade de resignação com o destino que é talvez um excesso de saber. O saber que o mal existe e as tragédias acontecem. Que já aconteceram antes de nós e vão acontecer depois. O saber que não somos assim tão especiais, apesar de não termos mais nada senão o nosso eu, e tudo acabar quando isso acaba – mas haver, ainda assim, alguma coisa que continua. O saber que a nossa própria tragédia não muda nada de essencial – a não ser para nós, que sendo nada, somos tudo o que temos. Não, não sei se a esse saber se deve dar o nome de cultura. É decerto uma forma suprema de grandeza, a grandeza de ser capaz de aferir da própria pequenez. A grandeza daquele tribuno romano cuja história li algures em Plutarco ou Marco Aurélio, e a quem os homens do imperador visitaram na sua villa para o matarem. “É para ser já, ou daqui a bocado?”, perguntou o tribuno. “É que se não for já, sempre posso almoçar.” Almocemos, então. Com um bocado de sorte, até podemos jantar, ler um poema ou dois, dormir mais uma noite e conhecer outra manhã. E aprender a não gritar. (texto publicado ontem, na coluna Sermões Impossíveis da Notícias Magazine)