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em louvor da desonestidade

Há uns dias que grassa uma alegria contagiante na blogada lusa que se diz 'pela vida'. Parece, dizem os ditos blogues, que Simone Veil, a autora histórica da lei do aborto francesa, aprovada em 1974, teria mudado de ideias. Em causa está uma entrevista dada por Veil a uma revista de televisão a propósito de uma reportagem efectuada por uma jornalista norueguesa, grávida de oito meses, numa clínica espanhola, onde lhe disponibilizaram um aborto por 4000 euros, e que foi recentemente transmitida em França. Veil mostra-se chocada com o facto: a situação é assustadora, diz ela. De seguida, faz algumas observações sobre a aplicação da lei em França e sobre a objecção de consciencia, que considera um direito dos médicos e que é consagrada pela lei francesa. Acrescenta que 'cada vez há mais provas de que desde a concepção há um ser vivo'. A curta entrevista, que pode ser lida aqui no original, tem sido apresentada em vários sites anti-aborto como uma retratação da política francesa. Há até quem chegue -- é o caso do ex-deputado e membro da organização 'Juntos pela Vida' António Pinheiro Torres -- a acusar os jornais (e alguns jornalistas em particular, entre os quais esta vossa inevitável) portugueses de ignorar 'deliberadamente' a situação. Estas imputações de desonestidade e manipulação não são novas nem causam surpresa. Vindas de quem, precisamente, acha que o facto de Veil se chocar com a existencia de uma clínica europeia onde é possível abortar aos oito meses significa que a política francesa mudou de ideias no que respeita a possibilidade, plasmada na lei que propos e conseguiu fazer aprovar, de as mulheres abortarem por sua vontade nas primeiras semanas de gravidez. Ou que admitir que o embrião é 'um ser vivo' significa que se é contra o aborto. Este tipo de 'leitura', na sua pobreza e estonteante má fé, deriva sobretudo de uma fundamentalista cegueira que decreta o mundo de acordo com os seus maniqueísmos. Se Veil é contra o aborto aos oito meses, então Veil é contra o aborto. Ponto final. Porque, para esta gente, é tudo igual: um ovo humano de dias ou um feto/bebé de oito meses. E se é igual para eles, deve ser igual para todos, a começar pelos 'assassinos de bebés' que se comprazem sanguinariamente em lutar por leis como a lei Veil ou como aquela que em Portugal entrará em vigor a partir de 15 de Julho. A admissão da consagração da objecção de consciencia dos médicos é apontada como outra 'grande vitória' da entrevista de Veil -- como, aliás, são considerados 'ataques' a objecção de consciencia quaisquer reflexões sobre as fórmulas de reconhecimento e certificação da mesma e o efeito desta na aplicação igualitária da lei em todo o território nacional, como aquelas que foram alvo aqui, no cinco dias, de textos da Ana Matos Pires, da Marta Rebelo e de moi-meme. Por fim, o 'ser vivo'. Ainda nos lembramos do célebre cartaz do 'já bate um coraçao' e dos batimentos cardíacos as 10 semanas incansavelmente contabilizados por aquele inesquecível João Paulo Malta. Sabemos pois que não vale a pena tentar explicar a esta gente que há uma diferença entre um ser vivo e uma pessoa, como não valerá a pena tentar fazer-lhes compreender o que queria Lídia Jorge dizer quando no Prós e Contras afirmou que uma mulher grávida de uma gravidez que não deseja não sente ter um filho dentro dela mas 'uma coisa humana'. Há delicadezas que nem toda a gente alcança -- e Lídia Jorge, muito ao contrário da enormidade de que foi acusada, estava a ser infinitamente delicada e empática. Há uma semana, uma simpática e decerto mui piedosa senhora açoriana, entre três linhas de variadíssimos e imaginosos insultos enviados por mail, fez o favor de me chamar, em remate, 'lídia jorge'. Assim, como se fosse o pior dos palavrões. Há definitivamente esforços que não valem a pena. Não vale, tenho a certeza, a pena tentar explicar a esta gente que torcer assim o que os outros dizem não pode, de nenhum modo, servir o 'caminho do bem'. Não vale a pena explicar a esta gente que é possível defender o aborto em determinadas circunstancias e não o aceitar noutras. Que é possível que eu, como Simone Veil e como, suspeito, Lídia Jorge, fique horrorizada com a ideia de um aborto aos oito meses. Não querem aproveitar esta frase para dizer que eu 'mudei de ideias'? Vejam lá. Por quem são. (Peço desculpa pela falta de acentos circunflexos e outros. Por qualquer motivo que não se entende, o wordpress não aceita esses comandos e estou sem pachorra para ir ao word buscá-los)

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